O APARTAMENTO 1801

As mudanças tinham terminado. Estava instalado na cidade e no apartamento 1801. Aquela seria a sua morada, aquele seria o seu espaço, aquele seria o seu mundo... mas um mundo com dias contados: e o relógio já começara a andar para trás. O ensurdecedor tique taque que não saía da sua cabeça. Tanta coisa para ver, fazer, conhecer... e cada hora que passava era menos uma hora que tinha para o viver... e cada dia era menos um dia...

“Se Deus é por nós quem será contra nós” era o que estava escrito na porta de entrada do apartamento 1801, com vista para o mar, na boca da praia. Em tempos acreditara naquelas palavras... não mais. O seu sentido deixara de fazer sentido. A incessante busca pela divino estava encerrada. Afinal, era ele e o mundo. E tudo o resto que se interpunha era simplesmente energia. E nisso ele já acreditava: as energias que movem o mundo. E a energia estava por todos e contra todos.

Partilhava o apartamento 1801 com outras duas pessoas. Dois portugueses que, como ele, partiram para a aventura. Um rapaz e uma rapariga. O que faziam em Fortaleza? O que os levou até lá? Estariam destinados a viver juntos? Mas à parte de todas as conjecturas eles foram uma agradável surpresa no seu percurso. Dois mundos, distantes do seu, prontos a serem compartilhados, explorados, vivenciados. Sentiu-se afortunado por os ter encontrado.

Antes havia-se perguntado o que teria sido se tivesse ficado no apartamento 901... mas naquele instante só lhe permanecia na cabeça a vontade de descobrir a nova vida no apartamento 1801.

O APARTAMENTO 901

Fazer uma mudança dentro da própria mudança é sempre complicado! Não foi fácil chegar até Fortaleza. Todo o processo emocional e burocrático levaram muito tempo a processar. Não foi a decisão mais fácil. Muita coisa estava em jogo, mas era preciso ter um raciocínio frio perante o aquecimento global que vivia na sua vida. E depois de estar instalado outras mudanças iriam acontecer. Vivia num apartamento, no nono e último andar, onde o ritmo não parava. As pessoas que dividiam consigo o espaço eram de uma vivacidade que o deixou relaxado logo nos primeiros minutos. Tinha chegado até eles pelo número que trazia consigo. No apartamento 901 a vida era agradável. E, quando tudo parecia encaminhado, encontrou outros portugueses, largados ali na aventura de estudar num país longínquo das suas terras natais. E o convite da partilha do apartamento 1801 surgiu. Mudar ou não mudar? Eis a questão! No fundo estavam ali todos no mesmo pé, no mesmo barco, na mesma descoberta. Estaria pronto para mudar de novo quando tinha acabado de se mudar? O rodopio de mudanças ocupara a sua cabeça. E, numa tarde de calor, ficou decida a mudança para o 1801. Um prédio de dezoito andares situado a dois quarteirões da praia.

Na sua cabeça as coisas continuavam estranhas. Afinal, ele era uma pessoa que se adaptava bem a qualquer ambiente, contudo, precisava de um poiso certo para onde retornar. Em tempos achou que não; mas naquele dia descobriu que ainda havia muita coisa em si por definir. Os conceitos que achava saber não eram assim tão certos. Seria ele a pessoa que julgava ser? Ou tudo não passava de uma vontade de conviver mais um pouco com os habitantes do 901? Afinal foram eles que o receberam de braços abertos. Soube que iria ficar consigo um sentimento de tristeza em relação ao que poderia ter sido...

O JOGO

Sentou-se na cantina da faculdade para comer alguma coisa antes da aula começar. Olhou à sua volta e o seu novo mundo estava a compor-se. Em seu redor tudo lhe parecia mais familiar; os caminhos, as pessoas e as paredes. Essencialmente as paredes que o olhavam de soslaio não o intimidando mais. As grosseiras paredes eram agora apenas paredes. Paredes novas, paredes velhas, paredes limpas, paredes sujas, paredes brancas, paredes verdes, paredes pintadas, paredes sem pinturas, paredes de azulejo... paredes! Até a ausência do café já não o incomodava assim tanto.

Era certo que em alguns momentos ainda sentia a solidão; mas essa, agora, era apenas gerada pela saudade. Saudade que não podia evitar. Estar longe não era tão fácil como tinha imaginado, afinal estava preso a um mundo do outro lado do mar. Para os forasteiros era fácil, para os apaixonados a coisa complica. Mas a brisa que corria no calor do dia refrescava o seu corpo e trazia-lhe nova vida. A vida que aceitou enfrentar. O jogo que decidiu jogar. E sabia que no momento em que o jogo fizesse 'game over' desejaria recomeçar tudo outra vez.

DEFYING GRAVITY por IDINA MENZEL

"Something has changed within me. Something is not the same. I'm through with playing by the rules of someone else's game. Too late for second-guessing. Too late to go back to sleep. It's time to trust my instincts, close my eyes and leap. It's time to try defying gravity. I think I'll try defying gravity and you can't pull me down... I'm through accepting limits 'couse someone says they're so. Some things I cannot change but 'till I try, I'll never know. Too long I've been afraid of losing love - I guess I have lost. Well, if that's love it comes at much too high a cost. Kiss me goodbye I'm defying gravity and you can't pull me down... So if you care to find me look to the western sky. As someone told me lately - Ev'ryone deserves the chance to fly. And if I'm flying solo at least I'm flying free. To those who'd ground me take a message back from me - Tell them how I am defying gravity! I'm flying high defying gravity! And soon I'll match them in renown. And no one is ever gonna bring me down!"

From: Wicked

A MENSAGEM

O calor despertou com o nascer do sol e a brisa foi levada pela noite. Acordou cedo e foi até à praia. O dia estava digno de uma bebida à beira-mar. O seu corpo havia secado com a alma, pois a coisa mais preciosa tinha ficado do outro lado da imensidão da água, que, agora, se prostrava aos seus pés. Já não estava mais sozinho... mas mesmo que a companhia fosse importante para si, mais real era o sentimento guardado por aquilo que não podia ver.

Encarou o mar de frente e pensou: "Agradeço por te ter ao meu lado, por ter o teu amor por inteiro. Mostraste-me o que é amar e ser amado. Posso ainda não saber muito sobre amor, mas as verdades que eu sei foste tu quem mas ensinou. E assim é porque me amaste, um dia, de inesperado. E porque me amas, hoje, na ausência.

Fechou os olhos e voltou à realidade. À sua volta estava tudo animado. Era um bom presságio!

A FORMIGA

O tempo estava quente e o coração tinha momentos em que desejava saltar do corpo para fora. A cidade ainda era grande demais para o seu desconhecido olhar. E sentiu-se como uma formiga num formigueiro estrangeiro, onde toda a organização já estava estabelecida.

Perdeu os medos e saiu de casa, sozinho, caminhando pela matriz ordenada da cidade, quarteirão a quarteirão, até chegar perto do mar. Aí respirou o ar salino e admirou a sinfonia das ondas, o vai e vem que relaxou os seus olhos; e o coração bateu mais devagar.

Do outro lado ficaram as memórias, do outro lado do oceano. Consigo, apenas o desejo de conhecimento de uma nova terra, onde bebiam a água dos cocos, onde o medo fazia parte do dia-a-dia, onde o sol recolhia às seis da tarde, onde estava sozinho...

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O dia tinha chegado. Rumou a Fortaleza onde ia ficar 10 meses.

Aquele foi um dia complicado. Deixar Lisboa e as suas pessoas para trás. Aquando da entrada para as portas de embarque, nos últimos olhares, nos últimos abraços, as lágrimas, supostamente proibidas de comum acordo, mas inevitáveis, visitaram os seus olhos e os dos que se foram despedir. Foi estranho atravessar aquelas portas sozinho. Esse foi o início da sua aventura. Um aperto no peito. Uma lágrima. Uma mensagem a dizer: "Amo-te". E o avião levantou voo... e no ar disse ainda um último adeus a Lisboa, à sua cidade, à sua antiga vida.

Não sabia como ia ser dali para a frente. Não sabia o que ia encontrar. Quem iria conhecer. O que iria fazer. Levou consigo um número de telefone e a esperança de que alguém atendesse do outro lado.

-Estou?...

LIVRE!

Procurar algo para lá do que os olhos viam, era o que tentava fazer todos os dias, desde o acordar ao deitar. Descobrir o que estava para lá da natural percepção das coisas. Em tempos apelidou-se de sonhador, mas essa ideia foi-se desvanecendo com o tempo, estava a crescer. E nada o podia impedir. Onde ficaram as viagens às terras perdidas? Onde pararam as batalhas travadas nos grandes campos verdes? Onde se perderam essas memórias? Onde se perdera ele?

O tempo corria atrás dele. O tempo corre atrás de todos. Ele não era excepção. O tempo trazia-lhe o esquecimento. O esquecimento de um tempo em que lutara pela liberdade. E parecia, agora, que nada fazia sentido. Onde ficou todo o sonho? Quando começou a realidade não imaginada? E olhou para si, uma figura desleixada, desarrumada, desconcertada, e não se imaginou assim. Só o seu rosto, no espelho, revelava os tempos longínquos em que acreditava. Liberdade.

Livre, disseram-lhe um dia, és livre!

Serei?, pensou.

Talvez. Não tanto como ontem... não tanto como amanhã.