PARA UNS A LIBERDADE PARA OUTROS O DESTINO

O dia estava frouxo, apesar do sol continuar a brilhar como em todos os outros dias. Mas por ser domingo, e os domingos serão eternamente domingos, abatia-se sobre ele uma névoa de melancolia e o seu olhar arrochava sobre o horizonte. Perguntou-se porque raio os dias não ficavam tristes naquela terra! Porque é que o sol tinha de nascer brilhante todos os dias...

- Levanta-te da cama! Vamos aproveitar o domingo.
- Só mais cinco minutos...
- Mais cinco minutos? São duas da tarde! Estás a fazer-te de difícil... Ouve lá, queres desperdiçar mais um domingo?
- Os domingos são dias perdidos por si só.

Quando era miúdo, o domingo era o dia de ir à igreja. Era esse o pretexto para se levantar bem cedinho. Depois deixou de acreditar em Deus. Quando era adolescente, o domingo era o dia de mais um treino de remo. Era esse o pretexto para se levantar de madrugada. Depois deixou de remar. Quando iniciou a sua juventude , o domingo passou a ser simplesmente o dia depois do sábado. Era esse o seu pretexto para fazer ronha entre a cama e o sofá...

Lá se levantou e fez todos os preparos para sair de casa. Com uma proposta como a que tinha recebido eram impossível não estar expectante:

- Hoje vais experimentar windsurf!

Hoje vou o quê?, pensou. Bem, e porque não. Estava no Brasil, era a altura de fazer aquelas coisas que a sua vida citadina e organizada não permitiam (ou a sua cabeça não estava moldada para tal). Foram até à escola de Windsurf e quando deu por si estava em cima da prancha com uma vela para levantar e começar a andar sobre a água. Não tardou muito a dar a primeira queda e outra e outra até conseguir aguentar os seus primeiros cinco minutos completos sobre a prancha. Mas mais importante que o equilíbrio era estar de novo no meio do mar, nas suas raízes, na sua liberdade. O tempo à sua volta tinha parado. Era ele, o vento e o mar. Uma batalha travada no meio da água. E não existia mais nada naquele momento. Experiências daquelas só se vivem uma vez. Quando voltasse ao mar sabia que não iria ser igual.

Já na praia, em conversa com um dos instrutores...

- Queria ser veterinário, mas acabei como instrutor de windsurf.

Queria ter-lhe dito que ainda tinha tempo, que corresse atrás desse sonho, que não deixasse para trás aquilo que toda a vida desejou fazer. Como era bom correr atrás dos sonhos. Viver experiências como aquela que estava a ser a sua. E, olhando à sua volta, optou pelo silêncio. De que servem as esperanças no meio da miséria. Nem todos têm o mesmo destino sobre a terra e nem todos os nossos desejos são aqueles que cumprimos.

CONVERSAS ENTRE A VIDA E A MORTE II

- Estás aí?
- Eu disse-te que estaria; não disse...
- Eu sei que disseste. Mas nem sempre acredito que ainda falo contigo.
- Mas aqui estou eu. Podes falar. Do que queres falar hoje?
- Não sei bem. Estava aqui a olhar o mar e lembrei-me de ti. Lembrei-me que a saudade existe em mim desde o momento em que partiste. No momento em que achei que nunca mais iria ouvir a tua voz. E nesta brisa refrescante do ar, foi como se me abraçasse e me reconfortasses um pouco. Tu, que corres na brisa do vento, ainda sentes a sua aragem?
- A forma como eu experiencio as coisas é diferente. Muita coisa muda quando o nosso corpo não é mais físico. É verdade que já não sinto o reconforto da brisa... Eu agora sou a brisa. O teu conforto.
- Isso quer dizer que não tens ninguém que te conforte?
- Não podes ver as coisas segundo esse prisma. É claro que eu tenho quem me conforte. Ou julgas que por vezes também não me sinto sozinho? Só que o reconforto aqui é diferente do que estás habituado a experienciar. Aqui somos as partes de um todo. Aqui somos aquilo que vocês não conseguem ser aí. No entanto também temos os nossos medos e dúvidas. Eu nem sei se o que estou a viver agora será eterno. Dizem por aqui que quando não houver mais ninguém que pense em nós mudamos para outro estágio da vida. Mas são só rumores. Um dia, numas voltas que dei por aí escutei uma conversa. Eles falavam da reencarnação. Do nosso regresso à terra enquanto corpo físico. Deduzi que esse seria o terceiro estágio da vida. Quando mais ninguém nos requisitar aqui, voltamos à terra. Mas como sabes, nunca fui uma pessoa de muitos estudos aí na Terra. A vida não me proporcionou essa educação e muito do que tenho aprendido tem sido agora. E, por isso, às vezes é-me difícil entender certas questões.
- Eu não gosto muito de pensar no que virá depois da morte. Quando morrer logo saberei. Agora tenho de me preocupar com a vida.
- Obrigadinho...
- Eu não quis ofender-te. Mas a verdade é que eu nem sei se a tua voz não é fruto do meu imaginário. Se não sou eu que te criei na minha cabeça, a viveres nesse outro mundo. E tu sabes como eu sou imaginativo. Podes muito bem já nem existir com consciência de poderes dizer-me todas estas coisas. Mas não fiques triste. Pois enquanto tiver o poder de te imaginar, podes contar sempre comigo.
- A verdade é que é tudo uma questão daquilo em que queres acreditar. Daquilo a que a tua mente se dispõe a fazer existir. Tu és aquilo que quiseres ser, aquilo que acreditares ser. Mas também sabes que não é só acreditar. Tens de fazer por isso. Para eu não deixar de existir tens de chamar por mim. Não vale a pena só acreditares que eu existo. Tens de me fazer vir ao teu encontro. Tens de me tornar real!

A META

Ele não conseguiu suster mais a respiração e, sofregamente, inspirou todo o ar que pôde para dentro dos seus pulmões. Deixou-se estar, assim, a respirar lenta e pausadamente toda a essência que compunha o ar, apreciando o mar que o envolvia. Sentia um peso no seu interior, entre o peito e a barriga, que lhe desconcentrava a vista. A náusea da imaginação de um último inspirar, para que a seguir pudesse, inconscientemente expirar e retornar ao processo inicial, a incapacidade de decisão em relação a todo o processo deixava-o desalinhado. Era a vida que o compunha, nunca a morte. Nunca convivera muito bem com a morte. E a ideia de perder alguém estava-lhe atravessada como um punhal no coração. Velar um corpo era como velar a própria vida. A debilitação da acção perante o efémero. Apreciava então a vida com as suas últimas forças, como se dos últimos metros de uma prova de corrida se tratasse. Só restavam aqueles metros... era correr o mais depressa que podia. Para ele, isto era vida. E mesmo que perdesse a corrida, sabia que tinha dado o seu melhor. Sabia que aquele esforço nos últimos metros não tinha sido em vão.

Poder-se-á entender a beleza da chegada, da finalização, da concretização, quando não damos tudo no seu término? Quando deixamos o corpo ceder? Quando deixamos de acreditar em nós? Quando sentimos que não vale a pensa o esforço daqueles últimos instantes já que não vamos chegar em primeiro lugar?

A ESSÊNCIA DO AMOR

Se o amor fosse uma coisa fácil será que ele lhe daria tanto valor? Será que o quereria viver? Provavelmente fartar-se-ia da sua facilidade. O rodopio da vida é que o levava a querer amar, amar muito. Segundo a Bíblia, Deus escreve direito por linhas tortas. Ele refez a frase dizendo que o amor era torto por linhas direitas. Ninguém sabe escrever o amor direito, pensou, isso não existe. Se assim fosse, quem compraria os livros ou veria os filmes que tanto mexiam consigo? O amor seria sem graça e morreria sozinho e abandonado.

Ter medo não é um crime. Amar também não. E é por isso que os dois coabitam no mesmo espaço. O medo e o amor. Um sem o outro não podem existir. Pois se não houvesse medo do que seria o amor? Como iria classificar o amar alguém se não soubesse explicar o que era ter medos e receios? E é por isso que não podia ter medo do próprio medo. Pois o medo estava presente no amor. E amando, consequentemente teria sempre medo! E por mais silencioso que vivesse esse medo, ele estaria lá. E ele sabia disso.

E SE DAVID TIVESSE SIDO ESCULPIDO VESTIDO? (CONTINUAÇÃO DE “QUANDO O HOMEM TOMOU O CENTRO DAS ATENÇÕES”)

Ainda tinha presente na sua memória as aulas de história da arte. E essas recordações eram pacíficas. Sempre foi atraído pelo estudo da arte. Sem grandes receios e com prazer na descoberta das novas formas de olhar o mundo. Sempre acreditou na educação do olhar com conta peso e medida. Pois não convém apenas assimilar as coisas... é preciso entender, interligar, criticar e pôr em causa. Só depois de todas estas fases poderia sentir-se sabido. Não gostava daqueles que empinavam as coisas e seguidamente despejavam a lição bem estudada. Isso não é educar o olhar. É, sim, direccionar o olhar, torná-lo unilateral, obsoleto, vazio.

De que serve saber o nome de todos os pintores se não se sabe ter um olhar critico sobre as suas obras? A arte é um jogo: um quebra-cabeças. Um mundo sem retorno. E quem lá está de lá não pode sair... o problema é viver-se dentro dele com classe. E bem sabemos que burlões é o que não falta por aí.

Mas, no meio de tudo, David continuava nu. Ainda se lembrava da aula em que o slide projectou aquela imagem na parede branca. Os risinhos ecoaram na sala e rapidamente foram silenciados pelo olhar da professora. Ali estávamos nós, ali estava ela, ali estava ele, David nu! E ninguém se apercebeu que o importante na escultura não se encontrava no corpo despido mas na sua cara. Miguel Ângelo explorou não só os cânones clássicos do herói-atleta, mas todo um novo olhar dramatizado da cena. David está concentrado e inquieto antes de um combate. E a riqueza está na inquietação perfeita do seu rosto.

Que diferença faria que estivesse vestido se o que importava era o seu rosto? Vestido ou nu o foco era a cara. Mas os anos passaram e o nosso olhar ficou viciado no pudor. E o foco automaticamente mudou de lugar. E a importância de uma boa escultura passou a estar no seu conteúdo e não na sua forma. Hoje pretende-se que um objecto de arte seja forte, explosivo, inquietante, ninguém pede que ele seja perfeito! E assim ficou o homem... forte, explosivo, inquietante e cada vez mais longe da perfeição!

SURPRESA!

Uma surpresa é sempre uma surpresa. E que surpresa teve quando abriu a porta e viu a sua mãe! Estava longe e tudo não pareceu mais do que uma imagem na sua mente. Uma imagem que demorou a tornar-se real, sendo que nunca lhe pareceu efectivamente real aquela presença no seu novo mundo. E mesmo que tenha tirado fotos para o comprovar, ainda assim, jurava que não havia acontecido. Mas era mesmo ela, a sua mãe, de braços abertos para o abraçar e juntos viverem um pouco mais de um tempo a dois.

O mesmo sorriso, o mesmo olhar, o mesmo coração... batia agora em uníssono de saudade recuperada, de longe memória apenas falada. E foi então que se apercebeu que havia mudado. Já não era o mesmo, estava crescido, no mundo dos adultos, onde a terra que os seus pés pisavam não era mais do que um caminho escabroso de labirintos infinitos por onde se ia perdendo e achando; onde a força tinha mais força que o próprio significado de força. Pois a vontade acarretava consigo esse vigor, em tempos imaginado, nunca antes vivido. Já que a vontade no seu habitat natural não passa de um capricho. De um dado adquirido.

Fechou os olhos e voltou a focar. E só tempos mais tarde correu para os seus braços sentido aquele aperto que une dois corpos há muito separados pela distância. Não que o muito fosse efectivamente muito, mas ali o tempo passava a triplicar. Qualquer palavra que viesse do outro lado era ampliada ou reduzida três vezes do seu sentido mais puro. E puderam falar no mesmo tom, frente a frente, olhos nos olhos, sem que tudo parecesse uma voz no fundo do túnel. Mas rapidamente tudo se esvaneceu. E a voz foi ficando cada vez mais longe, mais remota, afastada, ausente... e ponderou que tudo não tivesse passado de um sonho. Um bom sonho. Finalmente um bom sonho! Um sonho que jurava ter sido verdade...

RADAMES’ LETTER por ADAM PASCAL

"I'm sorry for everything I've said. And for anything I forgot to say too. When things get so complicated. I stumble at best muddle through. I wish that our lives could be simple. I don't want the world only you. Oh I wish I could tell you this face to face but there's never the time never the place. So this letter will have to do: I love you...."

From: AIDA

A CARTA

Preparou a cama para se deitar. Fechou os olhos e não demorou muito para que adormecesse. Pela porta entrava uma brisa que o esfriava naquela noite quente. O dia tinha sido calmo. Era domingo, e como qualquer domingo, em que parte do mundo se estiver, é um dia em que as ruas parecem desertas, os carros ficam na garagem, o ar apresenta-se sereno e os pensamentos fluem a mil à hora. E, finalmente, deitou-se para acordar numa segunda-feira agitada, em que a cidade acordava às cinco da manhã, o barulho nas ruas era ensurdecedor, em que as pessoas andavam agitadas para se dirigirem aos postos de trabalho, para viver mais um dia de labuta.

Mas a sua segunda-feira começou mais cedo do que esperava. Acordou a meio da noite com um terrível pesadelo. Sonhara com o seu amor, sentado algures, a ouvir uma voz segredando-lhe ao ouvido coisas terríveis sobre os dois. A voz aliciava-o a pensar coisas tenebrosas do propósito dos objectivos da viagem, das incertezas ao amor partilhado pelos dois, à ideia de que a sua partida não fora mais do que uma forma de encontrar uma nova vida da qual ele não fazia parte, do seu egoísmo em deixá-lo sozinho naquela casa que construíram para os dois morarem... A distancia e a saudade estavam a trabalhar no seu cérebro, deixando-o ainda mais perdido na sua viagem. Todas aquelas coisas mexeram com ele. A noite parecia mais escura do que nunca. E o som daquela voz ecoava por todos os cantos do quarto.

Ficou sentado na cama esperando o tempo passar. Queria correr da sua cabeça a memória daquele sonho. Mas estava a ser uma tarefa complicada. E não conseguindo cerrar os olhos agarrou numa folha e numa caneta e escreveu uma carta ao seu amor:

"Meu amor,
acho não consegues imaginar o que é estar longe. O que é ter saudades. Tu não estás longe do teu mundo, da tua família, da tua vida! Tu apenas viste uma parte da tua vida partir. Eu vi um mundo inteiro deixado para trás quando apanhei aquele avião. Da janela tudo começou a ficar mais pequeno, mais distante, longínquo e por fim apagado pelo oceano. Um mundo que não tão cedo vou voltar a ver. Aterrei no desconhecido. Tive de lançar novas bases para poder sobreviver. Não é fácil largar tudo! E no primeiro momento em que me vi aqui, sem ti, a primeira vontade foi fazer as malas e regressar para a nossa casa.

Tu acordas de manhã, sais à rua, naquela rua que nos é tão familiar, tomas o teu café, compras o teu tabaco, e rumas à tua vida montada, sem irregularidades. Tudo te é familiar. Agarras no telefone e combinas um café com as pessoas que tanto gostas. Elas estão mesmo ali, para ti e num segundo estás rodeado daquilo que sempre te fez feliz. E podes falar com elas, estar com elas, senti-las. Eu não! Eu tenho que recomeçar tudo outra vez. Sair de casa sem saber onde estou. Sair de casa para o indefinido do que será o meu dia. Sair para o vazio. E se, para ti, deve custar chegar ao fim do dia e veres que só estás tu na nossa casa, imagina o que é ficar sozinho da minha vida o dia todo.

Não te quero deixar preocupado comigo. É claro que vou encontrar novas pessoas com quem estar, falar, desabafar. Mas não deixa de ser um mundo efémero, que fica cá. E quando eu voltar posso não encontrar o que deixei onde deixei. Eu viajei para o desconhecido e a verdade é que voltarei para o desconhecido. Tu estás no teu espaço, na tua vida, podes mudar o que queres e quando queres. E quando eu voltar podes mesmo não aí estar. Para ti será sempre o conhecido.

É sempre mais fácil culpar aquilo que não se vê do que aquilo que se vê. Ainda não coloquei nenhuma fotografia tua no meu placard (falha minha) mas acredita que tenho mil imagens e recordações de ti junto ao meu coração. Fiquei abalado com um sonho, ou deveria chamar-lhe de pesadelo, e preciso que leias o que tenho para te dizer. Provavelmente nada disto faz sentido, mas sonhei que uma voz segredava ao teu ouvido coisas maléficas sobre nós.

A voz não parava de dizer que eu tinha posto os meus interesses à frente da nossa relação. Se ser feliz não está implícito na nossa relação... então digo aqui, bem alto, que pus os meus interesses à frente. Agora, se prezamos a felicidade de cada um compreendes que precisei de voar. Voar para aprender mais um pouco da vida, para um lugar onde me possa completar mais um pouco, experienciar mais um pouco. Aprender aquilo que só se aprende uma vez na vida. E sabes como eu me sentia naquela faculdade. Estava a tornar-me uma pior pessoa, estava a deitar-me abaixo, estava a perder-me na tristeza daquele ensino. Entendo que seria mais fácil para nós se eu aguentasse tudo aquilo e ficasse aí. Mas ambos sabemos que esse espírito não faz parte de mim... e saltei, saltei pelo oceano para aprender um pouco mais aqui, e já me sinto uma pessoa mais rica.

Fico com receio de que não tenhamos falado o suficiente sobre esta viagem, e agora aquela voz não me sai da cabeça, aquelas palavras, mas quero que fiques a saber o que penso. Uma vida a dois não compreende estarmos colados um ao outro. Compreende, sim, amarmo-nos... onde quer que eu esteja, onde quer que tu estejas. No momento em que nos deixar-mos de amar, aí sim, terminou a nossa vida a dois, não enquanto estamos longe pela distância. Quem ama verdadeiramente não faz estas coisas, disse-te a voz ao ouvido. Então essa pessoa não sabe o que é amar. Essa pessoa só sabe o que é possuir. O amor não se possui, não é algo que se possa comprar. O amor tem de existir.

Estou abalado com tudo isto. E a ideia de que possas pensar que não fazes parte da minha vida agora que eu estou aqui, deixa-me aterrorizado. E por isso continuarei a escrever-te as últimas novidades para que não percas pitada do que se passa aqui. E falaremos ao telefone horas seguidas para que o rasto da nossa voz não se perca. Em relação à tua boca, ao teu corpo, ao teu sexo... seria mais fácil não sentir nada disto, mas se o sinto é porque existes em mim!

Se eu pensasse em ti nem embora tinha ido, disse-te também a voz ao ouvido, e essas palavras martelaram-me a cabeça. Se não me tivesse deixado vir embora provavelmente já tinha deixado de pensar em ti. Tu foste a pessoa que me deixou partir, que me deixou voar, a pessoa que nunca deixou de me amar... aquele que eu quero ao meu lado."

Acabou de escrever a carta e adormeceu. No dia seguinte, olhou para aquelas palavras e pensou no seu absurdo. Se ele enviasse a carta ao seu amor estaria a alarmar algo que apenas existiu na sua cabeça, no seu sonho (ou pesadelo), naquela noite quente de domingo para segunda. Dobrou a carta cuidadosamente e enfiou-a na gaveta. Foi só um sonho. Só um sonho.

QUANDO O HOMEM TOMOU O CENTRO DAS ATENÇÕES

Da janela, o mar corrido em direcção ao outro lado, à civilização europeia. Um marco de história e cultura. E na ponta, Portugal, quase a querer fugir, afastando-se cada vez mais, deixando-se ficar para trás. E quem diria, que um dia, foram donos dos mares... navegaram pelas ondas bravias, descobriram novas terras e deram voz a vários povos ao longo do globo. E o que é feito de todos os feitos? Não passam de histórias grandiosas, de um passado inigualável, de uma realidade que não é mais a presente. Só resta a saudade... saudade de tempos gloriosos; e o fado não é mais do que mágoa. A mágoa que chora pelo que já teve, pelo que já não tem, pelo que poderia ter tido...

A Europa, regenerada pela Renascimento à cinco séculos atrás, segundo a exaltação do Homem, segundo a valorização de um ser, supostamente perfeito, é hoje o fruto de uma plantação, em tempos, gloriosa. A roda da vida... a roda da fortuna. Essa que, segundo as ciências, ditas ocultas, apresenta-se como tempos de mudança, instabilidade, ideias sem conclusão, dificuldade... Teria, então, o Homem mais valor que o Divino? Onde encontrar o equilíbrio?

Estava deitado na rede a ver o mar. O mar era a sua janela para o passado. O que encontraria quando voltasse? Teriam as paredes dos prédios novas histórias para contar? Ou apenas lhe diriam que pouco ou nada se passou? Teria sido o destino enquanto Homem ou o destino Divino a empurrá-lo para aquela viagem? Mas o que mais tentava perceber naquele momento era a natureza humana. A sua condição vs a condição dos locais. O mundo europeu vs o novo mundo. Onde existiria mais “humanidade”? Estava na altura de tirar o Homem do comando... o homem deixou de saber ser Homem.

E nas voltas das suas ideias indagou: “E se David tivesse sido esculpido vestido?”

SARAMAGO CEGOU O BRASIL

Já estava instalado num espaço físico a que podia chamar de “casa”. O tabernáculo onde retornava todos os dias. O lar para o qual tinha comprado a sua primeira rede onde passava partes das suas tardes a ler, ouvir música ou simplesmente a descansar. Contudo, ainda não podia chamar de sua aquela cidade imensa, aquela cultura tão diferente da que estava habituado. E, de certo modo, aquilo desconcertava-o.

Estava num mundo onde ricos e pobres batalhavam diariamente para conseguirem co-existir no mesmo espaço. Onde prazeres e privações se misturavam na orgânica da cidade. A favela ao lado do prédio de luxo. O pobre jogado no chão por onde o rico passa com o seu carro novo. O que teria acontecido para que tudo tivesse chegado àquele extremo? Onde as pessoas tinham medo de sair depois do sol se pôr. Onde andar na rua era um acto de coragem ao mesmo tempo que um acto de sobrevivência. Onde os sentidos tinham de estar despertos... pois ao mais ínfimo descuido o mal vencia sobre o bem.

Ele já nem procurava soluções para o problema que se avistava maior do que a sua cabeça podia imaginar. Ele só queria tentar perceber como tinham chegado àquele estado. Lembrou-se das palavras de José Saramago no livro “Ensaio sobre a cegueira”, as discrições daquele mundo onde todos estavam cegos... onde não se olhava a meios para atingir os fins. Onde a sobrevivência estava acima da moral. Seriam aquelas descrições tão diferentes do mundo que o rodeava?

A degradação do homem. E no meio da degradação a festa sem fim. A alegria de chegar ao fim-de-semana e voar para outra realidade. A realidade em que são livres e só o samba e o forró tomam conta dos seus corpos. De onde vinha a energia, de onde vinha o espírito, de onde vinha todo aquele calor? Eram perguntas que ocupavam a sua cabeça e para as quais ainda não tinha as respostas. O tempo ainda era muito pouco. Ainda agora tinha chegado a esta aventura. Ainda agora o seu coração batia a um ritmo português. Estariam os brasileiros cegos? Ou ainda se vivia o principio de uma grande cegueira?