III. VIVER DO AMOR

Como teria sido se estivesse perto? A mesma monotonia, a mesma melancolia, a mesma apatia. As horas que passavam por passar. Os dias que seguiam por ser esse o seu destino. E nunca esteve tão certo para afirmar ter tomado a decisão correcta. Estava longe, mudou de lugar, mudou-se a si mesmo. Era esse o grande mote da sua vida. Mudar. Era como um camaleão. Talvez tudo isso se devesse à sua profissão em constante mutação, criação, transformação. Metamorfoses que galopavam umas atrás das outras. Não estava apto para se definir no ontem, no hoje, no amanhã. E este era ele!

Mas a grande contradição da sua vida estava no seu olhar. A luta entre o que desejava ver e o que via, o que desejava sentir e o que sentia, o que desejava viver e o que viva. E só os seus olhos se apercebiam de tudo isso. Só eles tinham a real percepção do mundo que o rodeava. Desejava ser capaz de sentir o mundo de outra forma, da forma que apregoava, mas acabava sempre por lhe dar um tom lírico. Não conseguia subverter os seus próprios padrões.

Chamaram-lhe romântico! Mas romântico como?, pensou. Se ele não sentia o amor como era suposto sentir, como poderiam chamar-lhe tal coisa se o romantismo vinha carregado de regras e conceitos pré-definidos? Tentou perceber tal calamidade. E a única referencia pela qual conseguiu fazer alguma relação foi na pintura romântica. A explosão de cor, sentimentos e fantasias. O sentir pela ponta do pincel a ira, a dor, a loucura, a paixão, a vibração da alma, a alegria, a tristeza, sentir pelo puro prazer de sentir. Sentir sem culpa. Esta seria a maior aproximação que encontrava com o romantismo. Mas seria em todas estas coisas que pensavam quando o chamavam romântico?

E mais um ano estava a terminar. A contagem decrescente havia começado. 10... Era preciso organizar todas as ideias 9... Tentar compreender o que se estava a passar consigo 8... Definir sentimentos 7... Passar a acreditar no “amor”? 6... Não! 5... Acreditar em si 4... Viver sempre mais 3... Ser feliz 2... oh meu deus... é agora 1... Feliz Ano Novo!

“P’ra se viver do amor. Há que esquecer o amor. Há que se amar, sem amar, sem prazer. E com despertador - como um funcionário. Há que penar no amor, p’ra se ganhar no amor. Há que apanhar e sangrar e suar como um trabalhador. Ai, o amor jamais foi um sonho. O amor, eu bem sei, Já provei e é um veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor não é um ócio. E compreender que o amor não é um vício. O amor é sacrifício. O amor é sacerdócio. Amar é iluminar a dor - como um missionário”

From: Chico Buarque - A Ópera do Malandro

II. AMOR CORRECTO

Segue então a sua caminhada para a descoberta do que era o amor de que todos falavam. E a verdade é que ninguém o deixou experienciar o amor por forma a que ele lhe atribuísse essa palavra. O amor já estava repleto de significados, signos e significantes. Já era um sentimento formado. Algo que teria de se obrigar a sentir. E percorria os olhos em leituras ávidas, leituras cautelosamente estudadas, sugando toda e qualquer infirmação que lhe permitisse entender o que teria de sentir.

O problema foi quando se apercebeu que não conseguia expressar-se segundo aqueles modos românticos, poéticos, idílicos, “patéticos”. Sabia sentir os outros de uma forma fugaz, alterada, engelhada, capaz de fazê-lo chorar noites e dias, cometer loucuras e destruir-se aos pedaços pelos cantos da casa. Mas não se sentia apto para corresponder às regras e planos estipulados. E começou a achar patético o “amor”, assistir ao sofrimento dos outros pela não concretização da história do príncipe e da princesa. Por não os arrancarem do sono com um beijo carregado de um testamento de ...e viveram felizes para sempre... e, em todos os lugares, o repugnante sentimentalismo das lágrimas nauseantemente mal amadas.

E quando estava com alguém sentia a necessidade de pedir desculpas por não corresponder ao pretendido, por não conseguir ser aquilo que todos esperavam que ele fosse. Aquilo que todos esperam que todos sejam. E muitas vezes sentia-se culpado por não conseguir amar “correctamente”. Amava à sua maneira. Amava porque sentia. Amava porque estava vivo. Amava porque encontrou o seu significado para essa palavra. Porque sentiu algo a que resolveu apelidar de amor.

I. A LÍNGUA

Aborreciam-lhe os dogmas do amor, a esquadria perfeita a ser alcançada, as regras que se haviam infiltrado nas cabeças de todos. As histórias contadas quando ainda nem sabia o que eram palavras. E na cama tudo acabava com um final feliz, longe de imperfeições, longe da realidade. E todos os que o rodeavam aprenderam a amar segundo as regras dos grandes clássicos, dos filmes românticos, das músicas de amor. E os mandamentos foram escritos. As regras foram ditadas. Longe ficaram todas as possibilidades de uma experiência que fugisse aos regulamentos. Toda e qualquer outra forma de dizer amo-te sem o dizer. Os gestos estavam estudados, as palavras ensaiadas, era só esperar pelo momento certo para o fazer , dizer e ser feliz.

E a sua cabeça ainda infantil, adolescente, criava encenações perfeitas para o grande momento. Beijava o antebraço para que ninguém soubesse tratar-se do primeiro beijo. Actuava com as paredes para não se engasgar. Olhava-se ao espelho para tomar consciência da sua figura patética, desleixada, gorda. Nunca iria conseguir encarar tal momento. Se é que tal momento fosse algum dia acontecer.

E numa manhã chuvosa, apercebeu-se que o momento estava a chegar. Era agora! Nada podia falhar! O papel estava decorado, os passos milimetricamente ensaiados, a perca da vergonha em relação ao seu corpo... mas onde estava o romantismo, a luz das velas, os violinos? A casa estava silenciosa, a luz estava mais intensa do que nunca, a sua barriga tremia por todos os lados, nada acontecera como planeado... e uma língua entrou na sua boca! (O seu antebraço não tinha língua!)

NATAL NATAL

Os meses passavam e as formiguinhas continuavam atarefadas de um lado para o outro. Lá fora, o sol continuava abrasador apesar de já ser Natal. E onde estava o frio, os aquecedores, as lareiras, as árvores de natal, a neve, os enfeites, o espírito, a família? Tudo tinha ficado do outro lado do oceano. Ele mal sentia que era Natal. O dia aproximava-se e tudo continuava normal. As pessoas andavam à mesma cadência na rua, o transito continuava normal, as praias sempre cheias de gente, e nada de avistar o senhor barbudo. Podia até dizer que sentia falta da forma excessiva como se vivia o Natal na sua terra. Pelo menos vivia-se.

Sentia falta de ouvir as músicas de Natal. Da algazarra nas ruas. Da chuva. Do frio. Das avenidas enfeitadas. Das luzes. Da cor. Da magia natalícia. E só conseguiu dar valor ao Natal quando se perdeu dele.

UM FELIZ NATAL A TODOS

POSTAGEM SILENCIOSA

À sua volta, o barulho. Em si, o silêncio... Maior é a dor que não se ouve...

A TODOS OS MOMENTOS, A TODAS AS MEMORIAS

Ser feliz é uma condição que nem a todos pertence. Gostar de viver, de apreciar a vida, de acabar tudo com um sorriso na cara, até quando se acabar a própria vida. Ser vida e dá-la aos outros é amor. Mas nem sempre um amor compreendido. É um amor de energia, não de palavras. E a energia fica connosco, convosco para sempre. Fica porque está no ar, fica porque existe memória. Fica porque é um pensamento feliz. E por isso não podemos ficar no mesmo lugar para sempre. Viajamos para receber e dar mais energia. Para que quando voltarmos sejamos ainda mais felizes. E quando se dá o reencontro é explosão. E só aí percebemos porque existimos. A todos os Pedros, a todos os felizes por natureza, a todos os que morrem com um sorriso na cara, aos companheiros da Vida, ao Adão e a ti.

*Para a Dora, de um dos Pedros da tua vida.

ALMA LUSITANA

Ao olhar pela janela mirou a linha do horizonte e era como se estivesse a ver Portugal, esbatido, pequeno, no limiar da imaginação. Na televisão passava o noticiário português – as mesmas tretas de sempre contadas da mesma maneira. Já há algum tempo que não assistia à televisão portuguesa. Mas foi bom ouvir o sotaque, pois ele próprio começava a perder o dele. Saiam-lhe sons cantados, embalados no samba e novas expressões. Era notória a diferença aquando da sua chegada. Era difícil voltar a ouvir um brasileiro dizer, “Desculpa, não entendi”. E cada vez construía mais memórias para aumentar a sua saudade. A saudade daqueles que o acolhiam há três meses. O seu corpo, já enérgico desde a nascença, percebia agora que ainda mais energia tinha. Todo o calor e o samba despertavam nele novas vibrações. Tudo estava em constante mudança. Quem seria quando voltasse a pisar as terras distantes onde diz ter vivido?
Ao olhar a caixinha mágica, não pôde deixar de sentir a vagabunda tristeza lusitana:

“ Se queres ser o meu senhor
E teres-me sempre a teu lado
Não me fales só de amor
Fala-me também do fado
Que o fado que é meu castigo
Só nasceu p’ra me perder
O fado é tudo o que digo
Mais o que eu não sei dizer

Almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras
Na Mouraria canta um rufia, choram guitarras
Amor, ciúme, cinzas e lume, dor e pecado
Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado”

COMPLEXO TYLOR DURDEN

Acordas um dias, dás por ti e não és tu que estás lá. É outra pessoa. Outra pessoa viveu a tua vida por ti. E agora? Como voltas a encarar tudo? Todos olham para ti de outra forma, ou diria mesmo, já não é para ti que olham. Sentes-te um estranho no teu próprio corpo. Tocas na tua cara e a sensação é a mesma. Então o que está diferente? Porque olham para ti assim? Tentas reagir como sempre fizeste. E todos estranham que assim o faças. Esperam de ti outra coisa. Mas que coisa? Tu não sabes, tu não viveste o que eles julgam teres vivido. Viveste outras coisas, de outro jeito, de fora, por assim dizer.

Concentras-te para perceber o que mudou. Para perceberes o que andaste a fazer este tempo todo. Vasculhas as contas telefónicas e encontras chamadas que julgas não ter feito. No estrato do cartão encontras compras daquilo que não sabes. Abres a gaveta e vês fotos tuas por lugares que não conheces. E, quando dás por ti, criaste uma sociedade secreta, um clube, um clube de combate. Desces até à cave e encontras um mundo que não sabes ter criado. Todos te admiram por aquilo que não queres ser admirado. Porque terão os outros essa visão de ti? Pensas no que poderás ter feito. E no que poderás fazer para mudar tudo. E, sem saberes bem porque, tens a sensação de que nada vai mudar. Pois nada pode ser desfeito. Pensas então no que poderás mudar daqui para a frente. Caminhas pelos lugares por onde supostamente andaste e vais compondo o puzzle. Estás quase a entender o jogo. Estás quase a perceber a razão de tudo. E quando finalmente encontras a resposta ficas pasmo contigo mesmo. Efectivamente eras tu. Efectivamente fizeste o que fizeste. Quiseste ser aquilo que sempre sonhaste. Quiseste sentir aquilo que sempre te apeteceu. Quiseste viver aquilo que a tua vida não permitia. E tudo recomeça quando voltas à estaca zero. Mas há coisas que não podes mudar. Matas-te a ti mesmo e, no fundo, só matas uma parte de ti. Dás a mão à pessoa que amas e ficam ali à espera que a destruição comece. Tudo à tua volta começa a ruir. Os prédios explodem. A cidade arde. E ali ficam vocês, de mão dada, para entrarem na tua nova vida. Uma vida que não mais será igual à anterior. Explodiste com o teu apartamento, correste o mundo, criaste um ideal de vida, um ideal de morte. E apercebes-te que nunca deixaste de ser aquilo que sempre foste: Tyler Durden.

“Warning: If you are reading this then this warning is for you. Every word you read of this useless fine print is another second off your life. Don't you have other things to do? Is your life so empty that you honestly can't think of a better way to spend these moments? Or are you so impressed with authority that you give respect and credence to all that claim it? Do you read everything you're supposed to read? Do you think every thing you're supposed to think? Buy what you're told to want? Get out of your apartment. Meet a member of the opposite sex. Stop the excessive shopping and masturbation. Quit your job. Start a fight. Prove you're alive. If you don't claim your humanity you will become a statistic. You have been warned”

Tyler Durden in Fight club

O QUE ANTÓNIA NÃO QUERIA VER

Quando abriu a porta de novo, com a chave que encontrara nos pertences do seu falecido marido, não imaginou que o mundo atrás daquele pedaço de madeira fosse mudar a sua vida. Como poderia ela entender tais coisas? Que o seu marido havia sete anos que vivia uma vida dupla, uma vida da qual ela não fazia parte, uma vida onde era feliz! A dor na sua cabeça ficou mais aguda. Suportar a ideia de que o seu marido tinha uma amante era uma coisa... suportar a ideia de que o seu marido tinha um amante era outra. A expressão do amor tornava-se complicada. Ela julgava conhecer todos os cantos da cabeça do seu marido, os gostos, os desgostos, os prazeres, as paixões, as desilusões... e afinal era só metade. Metade do seu sorriso, metade do seu amor, metade do seu prazer.

Antónia acabou por se tornar uma hospede da casa do amante do seu marido. Era-lhe necessário compreender, entender, encontrar a verdade sobre a pessoa que amava há quinze anos. E foi feliz na descoberta desse outro mundo. De um outro modo de ver e olhar a vida e o amor. E quando se apercebeu estava apaixonada pelo amante do seu marido, pela única recordação que lhe restava. O desejo de sentir o que ele sentia... e então resolveu partir. Poderia ela acusar o amante de lhe ter roubado o marido? Poderia ela culpá-lo das vivencias que não teve? Poderia ela ama-lo por ter amado o seu marido incondicionalmente? Poderiam chorar juntos a morte de um amor? Sabia que um dia iria voltar. E o mundo do seu marido era agora o seu mundo. E, mesmo que ausente, a sua memória continuava presente naquele apartamento. Nas conversas, nos olhares, nos sorrisos, nas lágrimas. E dentro de si carregava uma nova vida...