BLEIBE, RESTE, STAY

Como poderiam as pessoas alguma vez perceber? Estavam demasiado embrenhadas nas suas próprias vidas, nos seus próprios conceitos, nas suas próprias experiências, nos seus próprios sentires. Mas não se retirava de todo desse panorama, pois também ele carecia do mesmo problema. Contudo, vivia na pele as mais terríveis chagas e mazelas. E isso ninguém lhe podia retirar pois as marcas eram visíveis. Podiam simplesmente tapar os olhos, vedar-se ao que viam, sentiam, percepcionavam, achar subterfúgios para toldar os olhos e a mente mas nunca podiam fugir ao que era real. E ele sabia disso, que não valia a pena esconder-se mais atrás do pano, atrás das mascaras, atrás das imaginações. Isso não era viver, era morrer aos poucos para um dia acordar e pensar – qual o sentido de tudo isto?

E, finalmente, escolheu a verdade. Mas a verdade destruiu o seu mundo. A verdade trouxe desilusões, ódios, finais infelizes, hipocrisias, lamentos, despedidas e o que ficou? Ficou ele, sozinho, habitando uma casa vazia. E tudo isso alterou-lhe, em muito, todos os conceitos de vida, de amor, de amizade. Ficou a pensar em como seria o virar da página, o iniciar de uma escrita numa folha em branco, sem parágrafos antecedentes a não ser o da sua própria desilusão, pois iludido não estava mais.

Fica – mas isso não lhe era permitido pedir!

A CONDIÇAO DE ESTAR SO

Estamos sempre sozinhos. É connosco e apenas connosco que podemos contar. E isto, apesar de parecer uma imagem aparentemente triste, é de uma grande força e energia. Começamos sempre por ser nós, pois simplesmente somos nós, carregamos o nosso corpo, a nossa alma, o nosso espírito. A nossa existência deve então dar início no amor que sentimos por nós mesmos, pois no final resumimo-nos a nós, quando tudo à volta desaparece, continuamos connosco. É preciso que nos amemos pelo que somos, pelo que fazemos, pelo que vivemos.

Duas pessoas podem juntar-se, unir-se, viver lado a lado, contudo, não podem misturar-se, ser uma só carne. Pois cada uma é uma só, eternamente individual em si mesma. Existe um valor primordial em relação à vida individual, pois é nela que habitamos, é ela a nossa casa. Viver implica estar sozinho. E essa solidão não deve ser encarada como negativa. Pois mesmo quando acompanhados, é connosco que nunca deixaremos de estar, quando tudo o mais nos deixar. O que nos rodeia são as mais valias da vida. São o que fazem o nosso eu experienciar-se na Terra. O que nos dará a noção de aqui e ali, de ontem, de hoje e de amanhã. O que nos rodeia é o que nos dá vida, o que nos faz ser um ser individual, único, apartado. Contudo, não somos aquilo que nos rodeia. Somos aquilo que existe no meio do que nos rodeia.

PONTO DE PARTIDA

Bem vindo ao mundo novo, pensou para si mesmo. Era tempo de mudanças, definições, remodelações, redefinições, encontrar-se a si mesmo num habitat outrora natural. Sempre lhe disseram que quem mais sofre é quem fica. Contudo, a dor da chegada para ele que partiu era indescritível. Perguntaram-lhe se estava diferente depois da viagem e ele respondeu – Eu já estava diferente antes de partir. E essa é a condição dos viajantes. Sentirem-se em constante mutação a toda a hora. Mas quando regressam ao ponto de partida, à primeira vida que deixaram para trás, sentem-se estranhos estrangeiros da sua própria terra que os vira nascer. Eles mudam e à sua volta nada muda. Tudo está no lugar onde foi deixado. Tudo, menos o sentimento que as pessoas sentem por eles. Esse é vago, distante, memorial. Relembram-se as histórias do passado, contam-se as histórias do presente e depois... nada mais fica que um olhar nervoso e sorridente.

- E foi assim!
- E aqui foi assim!
- Mas está tudo bem contigo?
- Sim, está. E contigo?
- Também. Sabes como é...
- Sei.
- Pois.
- Pois.
- Pois.

FRIO

Acordou de manhã e descobriu que já não estava no Brasil. O frio que entrou pela janela do quarto, agora vazio de sentimentos, não enganava ao ser que ali dormia. Ele estava na sua casa de Lisboa, só que já não a sentia como sua casa. Olhou à volta e era como se tivesse alugado uma casa, um espaço que em tempos havia pertencido a outros. Já não era só o frio que entrava pela janela, era também o frio das paredes, o frio das recordações, o frio dos olhos que congelavam as lágrimas não permitindo que elas escorressem.

Deambulou pela casa e não sentiu nada. Nem o mínimo calor que um lar deveria transmitir. Nada ali fazia sentido agora que não era mais partilhado com o seu amor. E o que duas mãos tinham traçado pareciam agora traços de gente desconhecida. Faltava algo. Faltava a outra metade desaparecida. Faltavam os sonhos. Faltava a doce carícia, o abraço por receber. E não era o frio das ruas que o incomodava, era o frio da alma, o vazio do coração.

MAIS PERTO

Estava quase - mais um dia e estou de volta – pensou. Tanta coisa havia ainda por fazer, malas para arrumar, livros para empacotar, documentos para tratar e o tempo voava. Cada segundo era menos um segundo, cada olhar era menos um olhar, cada respirar era menos um. E quando olhou para trás recordou o seu dia de chagada e tudo lhe pareceu tão pouco tempo ao mesmo tempo que lhe pareceu uma eternidade. Estava cada vez mais perto de regressar.

Pensamentos novos, pensamentos antigos, tudo lhe remexia na cabeça. Retracto ambulante de um jovem pasmado com o decorrer das horas. Figura que já não era, traços que já não lhe pertenciam, cores que saíram com o tempo. O quadro de si mesmo estava gretado, cansado, desgasto. Olhou para a tela branca ao lado, para os pincéis por usar, para as tintas ainda fechadas nas embalagens. Tudo aquilo fazia parte de um recomeçar. Abriu o primeiro tubo, misturou a linhaça, poisou levemente o pincel, e pintou o primeiro traço... estava mais perto de algo... estava mais perto... mais perto...

UMA CASA QUE SE COMEÇA A APAGAR

A personagem não podia morrer e o escritor também não. Era preciso que continuasse a acreditar em si. Acreditar, a agora mais do que nunca, naquilo que era. Estava cansado, mas a primeira etapa da sua viagem estava prestes a terminar, mais uns dias e estaria de volta à sua terra natal. A contagem decrescente havia começado. Restavam-lhe seis dias para que se despedisse daquela paisagem, da varanda do seu apartamento. Quando voltasse era preciso encontrar outra morada, outro espaço, outra casa e naquela permaneciam tantas memórias. As paredes casca-de-ovo tinham tanto para contar e ali permaneciam, em silêncio, a olhar para a sua figura em frente ao computador, a tentar comunicar com o outro lado do oceano, esse que fazia toda a diferença.

Nas colunas acompanhava-o Regina Spektor com o seu piano e a sua genialidade. Era nela que se sentia vivo. Era ela quem cantava a sua vida, as suas histórias, as suas memórias. E ele acompanhava-a com a sua voz trémula, cansada, tabagista, rouca... esperando pelo tempo que o levaria de volta à sua ex-realidade, à sua ex-vida, à sua ex-morada. Olhou à sua volta e havia tanto para empacotar, para guardar, para levar, para limpar, para deixar tal como foi visto no primeiro dia. Era essa a crueldade... apagar qualquer vestígio da sua passagem por ali e recomeçar tudo noutro lado. A casa podia ficar vazia de si, mas poderia ele apagar de si aquela casa?

ON MY OWN por LEA SALONGA

"And now I'm all alone again nowhere to turn, no one to go to. Without a home, without a friend, without a face to say hello to. But now the night is near and I can make-believe he's here. Sometimes I walk alone at night when everybody else is sleeping. I think of him and then I'm happy with the company I'm keeping. The city goes to bed and I can live inside my head. On my own pretending he's beside me. All alone I walk with him 'til morning. Without him, I feel his arms around me and when I lose my way, I close my eyes and he has found me. In the rain the pavement shines like silver. All the lights are misty in the river. In the darkness, the trees are full of starlight and all I see is him and me forever and forever. And I know it's only in my mind that I'm talking to myself and not to him. And although I know that he is blind, still I say there's a way for us. I love him but when the night is over, he is gone. The river's just a river. Without him, the world around me changes. The trees are bare and everywhere the streets are full of strangers. I love him but every day I'm learning. All my life I've only been pretending. Without me, his world will go on turning, a world that's full of happiness that I have never known. I love him, I love him, I love him... But only on my own..."

From: Les Miserables

BRUNA

Verteu mais uma lágrima por mais uma despedida, mais uma vez o aeroporto, mais uma vez as pessoas estranhas à sua volta, rodopio de emoções, vidas que se cruzam, descruzam, para quem sabe, um dia, voltarem a cruzar. Não era um adeus. Era um até mais. Mas tudo pelo qual tinham vivido era mais forte do que a retenção das lágrimas. A viagem ao Brasil mudou as suas vidas e, juntos, assistiram a essas transformações, juntos conversaram, juntos viveram, lado a lado, porta com porta. E agora a sua porta estava aberta. Era visível o colchão frio, despido sob a base da cama, as paredes nuas, um silêncio trazido pela aragem da janela que foi deixada, também ela, aberta. E continuou a dirigir-se ao quarto dela para vestir-se, era lá que tinha as roupas, no armário que estava metade vazio expondo toda a brancura dos contraplacados. E alguns cabides permaneciam no varão, solitários, balançando com as pequenas brisas que entravam.

O mundo, onde estava a aprender a viver, desaparecia aos poucos. Ainda se lembrava do primeiro dia em que a viu como se estivesse a acontecer naquele momento. O tempo tinha voado e tanto que viverem, o mesmo tanto que nunca mais iria esquecer, as horas bem passadas, as conversas na varanda, os desabafos das tristezas, o contar das alegrias, explodirem de vida, a partilha de uma casa, das viagens, das emoções. E quem iria esperar que aquela pequena moça era tão parecida consigo? Aquela que ele viu chegar numa tarde, onde o sol já se punha, junto à praia, quando os rostos ainda se estranhavam, onde tomaram a decisão de partilhar uma casa. Todos esses momentos ficaram guardados na sua memória. Restava-lhe a ele continuar.

EMPTY CHAIRS AT EMPTY TABLES por MICHAEL BALL

Deitou-se para dormir um pouco. Andava a dormir pouco ou nada. Mas a sesta foi atribulada, recheada de pesadelos e, quando acordou, tocava uma música nas coluna...

"There's a grief that can't be spoken. There's a pain goes on and on. Empty chairs at empty tables, now my friends are dead and gone. Here they talked of revolution, here it was they lit the flame, here they sang about tomorrow and tomorrow never came. From the table in the corner they could see a world reborn and they rose with voices ringing. I can hear them now! The very words that they had sung became their last communion on the lowly barricade.. at dawn. Oh my friends, my friends forgive me that I live and you are gone. There's a grief that can't be spoken. There's a pain goes on and on. Phantom faces at the window. Phantom shadows on the floor. Empty chairs at empty tables where my friends will meet no more. Oh my friends, my friends, don't ask me what your sacrifice was for. Empty chairs at empty tables where my friends will sing no more..."

From: Les Miserables

O LIMITE DO TEMPO

O ano novo tinha começado e só lhe restava ficar entregue aos bichos. Não tardaria muito até que regressasse a Lisboa, ao seu mundo, à sua vida. Mas o que seria agora o seu mundo? Tantas coisas aconteceram. Tudo estava diferente, mudado, triste, vazio. O que iria sentir quando abrisse de novo a porta de sua casa? A chave rodaria lentamente duas vezes na fechadura e no seu interior o silêncio esperava por si.

Questionou-se em relação às suas capacidades de aceitar esse facto. Não estava preparado para encarar essa realidade, muito menos sabendo que seria por tempo limitado, que de novo estaria de volta ao Brasil. E aí seria mais uma batalha, de novo a procura de casa, de estabilidade, de uma vida que, mais uma vez, teria o seu tempo contado.

Não tinha como fugir a esta segmentação do tempo. Era assim que a vida se fazia. Fazia-se por segundos, minutos, horas, dias, semanas, anos, décadas... viagens para aqui, para ali e tudo dentro do seu tempo, das suas limitações, da sua passagem. E cada segundo que passava parecia-lhe mentira. O tempo tinha-se esgotado.