É A VIDA!

Estacionou o carro mesmo em frente à porta de casa. Incrivelmente, dois lugares esperavam ali por si. Não era costume deparar-se com esta fartura de estacionamento. A vê-lo estacionar estava o seu vizinho do rés do chão. Sempre com aquele olhar vazio de quem viu o mundo a deixar de fazer sentido aquando da morte da sua mulher. Já tinha a sua idade e percebia-se que a vida para ele deixara de ter lógica ou propósito. Estacionou o carro, desligou o rádio, puxou o travão de mão, saiu e fechou a porta. Olhou para o vizinho e desejou-lhe um bom dia. Não obteve resposta. O vizinho permaneceu parado à porta do prédio. Quando se dirigiu à porta ficou indeciso em qual seria a melhor forma de passar por ele sem o incomodar, visto os seus pensamentos estarem aluados da realidade presente. Limitou-se a usar um simples ‘Com licença’. O vizinho olhou fundo nos seus olhos e disse com um ar muito saturado, ‘É a vida!’, e permaneceu ali, quieto, como se ele nunca tivesse passado por ali, nunca lhe tivesse dito nem bom dia nem com licença. Mas aquele ‘É a vida!’ deixou-o incomodado. A profundidade da frase banal entrou em choque no seu cérebro. Como se este soubesse o que lhe ia na alma. Como se este tivesse andado a escutar pelas paredes os meandros da sua vida, espiando-o pelo buraco da porta. Ficou a pensar nas pessoas estranhas que cruzavam a sua vida, deixando dicas, desconfortos, alegrias, tristezas e sempre por poucas palavras, por escassos momentos. E talvez seja por isso. Por serem breves histórias, momentos passageiros, livros por ler. Aparecem, soltam as primeiras linhas e nunca saberemos a continuidade do que nos poderiam dizer... e talvez não tivessem mesmo mais nada a dizer. Vidas!

FALHADO

Quando a festa acabava, a audiência já havia rido tudo, ele voltava para o camarim, tirava a maquilhagem e o que restava do palhaço? Apenas um fato vazio! Ele era o falhado. Que triste e pobre cara. Tentava ser feliz enquanto cantava os seus musicais favoritos, imaginando toda a gente à sua volta a dançar e a cantar com ele, mas no fim do dia, quando chegava a casa, deitava-se sozinho na sua cama. O silêncio era mortal. As noites eram solitárias, os dias eram ermos. Fechava os olhos e só aí encontrava a paz, nos rocambolescos sonhos e nas imaginárias viagens ao mundo do subconsciente. Era aí que existia na sua plenitude, longe dos olhares, das acusações, das insinuações, longe do que o fazia sofrer enquanto acordado. Ali já ninguém se ria de si mas consigo. Ali era tudo tão mais fácil. O mundo parecia mais belo, mais colorido, mais chamativo. E quando acordava não deixava de pensar no falhado que era. Só lhe apetecia chorar, mas nem uma lágrima conseguia verter. Era demasiado penoso, pesaroso, castigado. Estaria a tornar-se numa triste figura? Toda a força interior não era mais do que um refúgio, mas era a única coisa que o permitia a avançar. Não fosse ela e estaria largado num canto qualquer. Olhou-se ao espelho e viu reflectido no armário o fato vazio. E o seu interior apertou-se e o corpo contorceu-se. E ali estava a sua imagem... a imagem de um falhado.

MITOS E FACTOS

- De que se trata tudo isto afinal? Onde pretendemos chegar? Qual o propósito das coisas? De estar vivo? De existir? De ter um corpo, uma cabeça, braços, pernas? Qual o propósito de pensar? Para que teremos pensamentos se não os podemos pensar? Para que teremos uma vida se não a podemos viver, se a enchemos de regras e mentiras? E porque é que é tão difícil viver com a verdade? Com a nossa verdade? Com a verdade dos outros?

Existiam momentos da vida em que a sua cabeça enchia-se de questões impertinentemente pertinentes. E este era um deles. Momentos em que levava um abanão, em que tornava-se necessário repensar a si mesmo, repensar o mundo, repensar a vida. Encontrar um significado fabuloso para tudo. Mais um que iria juntar ao baú dos significados. Mas um para conseguir tolerar mais uns anos de vida. Ele não era uma pessoa negativa. Ele era uma pessoa até extremamente positiva, confiante de si mesmo, um pouco egocêntrica e narcisista, e encontrava sempre um ângulo para ver o lado positivo das coisas. Contudo, tinha ido longe de mais. Tinha ultrapassado os seus próprios limites. E o que era errado parecia certo e o que era certo parecia errado. Apercebeu-se não tratar-se da verdade mas sim de factos. Tudo se resumia a factos. O que era e o que não era. O que havia sido feito e o que não havia sido feito. E esses factos iam tanger a sua realidade, a sua vida, a sua história.

O TEMPO NÃO PÁRA

Deveria permitir ao tempo que actuasse. Deveria pedir ao tempo que o deixasse. Deveria implorar ao tempo que parasse. Que o deixasse dormir mais um dia, que o deixasse pensar mais um hora, que o deixasse sentir-se vivo por mais um segundo. Dava por si parado, no decorrer das horas, a olhar para tudo, mas apenas olhar, nada fazia. A casa permanecia desarrumada e limitava-se a apreciar essa desarrumação. E no sono encontrava a paz. De olhos fechados e sem pensar. Adormecer, não acordar, fazer ronha, não se permitir a viver um pouco mais.

Ouvia as palavras daqueles que o rodeavam, ouvia com toda a atenção. Eras opiniões, posições, visões. As palavras não lhe entravam despropositadas. Ele ouvia, mas também tinha a sua própria forma de sentir. E aí residia o maior desafio. Ouvir-se a si mesmo. Encontrar o caminho dentro de si. Explicar aos outros esse caminho? De que serviria? Ele é que o tinha de entender. Ele é que tinha de saber viver com ele. Ele é que tinha de acordar no seu corpo no dia a seguir, e no outro, e no outro e no outro. Mas as certezas já foram mais absolutas, agora eram confusas, dúbias, estranhas, só lhe restava uma certeza: o amor.

Podemos mudar tudo em nós, podemos mudar tudo nos outros. Só não podemos mudar o amor que sentimos. Talvez um dia esse possa desaparecer. Mas isso é um processo. Não o podemos mudar da noite para o dia e quem disser que consegue estará a mentir ou a querer enganar-se a si mesmo. Podemos mudar de opinião todos os dias, podemos mudar de roupa todos os dias, podemos mudar de atitude todos os dois, mas não podemos mudar o coração.

- Acorda e vive a vida, bebe mais um pouco! – disse o tempo.
- Não quero!
- Mas aqui quem diz o que tu queres sou eu.

Como fugir ao tempo? Ele continua a passar...