Acção passada terça-feira dia 15 de Maio de 2012
Quando Rodrigo é confrontado com a verdade de António

Há um mês que o silêncio se abatera sobre o apartamento, deixou de ser tocada música, de se ligar a televisão, os jantares eram silenciosos e a melancolia tinha tomado conta do espírito. Nunca mais se ouvira falar de Filipe, onde estava, se estava bem, se planeava voltar. Os corações estavam magoados e as esperanças com pouco ânimo. Rodrigo levantou a voz, estava a precisar de desabafar:

- Toda a vida sonhei com o que estávamos a viver. Não que fosse este o tipo de relação que eu desejasse, simplesmente desejava algo que parecesse certo. E tudo parecia certo. Eu era feliz, julgo que tu também e o Filipe parecia que tinha encontrado o seu lugar. Mas pelos vistos algo não estava a correr bem. Porque outra razão ele se iria embora? Eu sei que a vida dá muitas voltas, a minha deu muitas voltas.
- Se deu...
- Sempre fui uma pessoa de mente aberta, sempre aceitei todas as formas da expressão do amor. E com vocês tive de reciclar todos os meus conceitos. Aceitei viver uma vida da qual sempre havia dito que comigo nunca resultaria e tudo por um sonho, o sonho de ser feliz. E aqui estou eu com o maior dos vazios no peito. Depois de tudo pelo qual passámos para chegarmos aqui e ele desapareceu sem dizer porquê. Alguma coisa fiz de errado. Eu sei que a culpa foi minha...
- A culpa não foi tua Rodrigo. O Filipe é uma pessoa inconstante, está sempre à procura de alguma coisa, a cabeça dele não pára. Enquanto estivemos juntos fomos felizes mas algo fê-lo querer partir. Mas esse algo não foste tu. Antes de te conhecer a nossa relação estava por um fio. Não que não nos amássemos, nós amávamo-nos e muito. Mas só nós dois não estava a resultar. Nasceu uma barreira muito grande entre nós e já não sabíamos de que forma estarmos juntos, como habitar o mesmo espaço para viver o amor que sentíamos. E acredita que foram tempos muito pensativos, de decisões muito difíceis de gerir a nível sentimental. Como agir perante a ideia de terminar uma relação cheia de amor mas que não funciona?
- E foi então que eu entrei nessa história. Eu fui o salva vidas...
- De certo modo foste ou então eu e o Filipe perder-nos-íamos para sempre. E não foi uma decisão nada fácil. A ideia de partilhar tudo com mais uma pessoa, de saber que o amor dele teria de ser partilhado com outra pessoa e isso tudo deu-me a volta a cabeça. Eu só pensava em quão tudo era errado, uma ideia de loucos. E fiquei furioso com o Filipe, cheguei mesmo a odiá-lo, achei que ele já não me amava mais e que esta era a maneira que ele tinha encontrado de se envolver com outra pessoa e ir-me esquecendo aos poucos sem ser um corte demasiado radical. Eu sofri tanto como tu não imaginas. Estive mesmo a pontos de preferir perdê-lo para sempre do que compactuar com esta ideia louca de um relacionamento a três. Foi um processo complicado até tomar a decisão de deixar acontecer. E porque não? Ficávamos sempre mais felizes quando tu andavas por perto. E quando te ias embora ficava uma paz no ar. O Filipe tornava-se a pessoa mais carinhosas do mundo comigo e pode parecer estranho mas comecei a amar-te pelo simples facto de deixares o meu homem assim feliz. E aos poucos fui interiorizando a ideia de que se estivesse cá sempre que tudo ia dar certo. Foi então que, pela primeira vez, deparei-me com um novo sentimento. O de amar duas pessoas ao mesmo tempo. E foi tudo tão estranho e complexo que eu não sabia lidar muito bem, mas tu parecias dar conta do recado, como se fosses a verdadeira peça perdida do nosso puzzle. Contigo tudo batia certo.
- E agora que somos só os dois já nada bate certo?
- Eu amo-te Rodrigo. Mas a dor de não ter cá o Filipe é demasiado grande. Mas ainda bem que estás comigo, que estamos juntos.
- Eu também sinto muito a falta do Filipe, mas prometo que não te vou abandonar. Eu amo-te tanto.

Acção passada quinta-feira dia 14 de Agosto de 1977
Quando António descobre as roupas no armário

António estava sozinho em casa, a avó tinha ficado doente sem poder tomar conta de si. Estava por sua conta, entregue a uma tarde de verão quente, sem nada para fazer. Deambulou pela casa e tentou tomar atenção a todos os pormenores. Tentou encontrar os defeitos das portas e das janelas. Rastejou-se de costas pelo chão enquanto contava as manchas de humidade no tecto. Ainda perdeu algum tempo aos saltos em cima da cama dos pais mas quando viu o armário da mãe ficou pensativo. Lentamente desceu da cama e dirigiu-se às duas grandes portas forradas de espelhos e tentou olhar para si mesmo enquanto espreitava para o seu interior pela fresta. Abriu uma das portas e contemplou o guarda-roupa. Sempre se perguntou porque é que os homens não podiam usar saias ou saltos altos. Se a sua mãe ficava tão bonita porque não poderia ele ficar também. Tirou uma saia do cabide e vestiu-a. Mas a saia era grande demais e por isso transformou-a num vestido. Olhou-se as espelho e gostou do resultado. À sua nova indumentária juntou um chapéu preto de grandes abas e, da caixinha das jóias, retirou um colar com o qual se enfeitou. Algo de excitante se passava dentro dele. Parecia estar a descobrir um outro lado de si mesmo. Voltou a deambular pela casa mas agora vestido a preceito, imitando alguns gestos usados pela sua mãe.

Entrou na casa de banho e abriu a gaveta das maquilhagens. Começou pelos batons, escolheu o cor-de-rosa e começou a pintar os lábios. Tentou reproduzir os gestos da sua mãe mas isso só fez com que ficasse tudo esborratado. Depois, pegou no pincel e abriu algumas pequenas caixinhas com pós. Passou pela cara sem saber muito bem o que estava a fazer. Perdido naquelas experiências nem tinha dado pela sua avó ter entrado em casa.

- O que é que pensas que estás a fazer? Tu não és mulher! És um homem e os homens jogam à bola. O que é que eu faço contigo. Só me faltava agora um maricas. Despe já essas roupas e vai para o banho. Não fiques a olhar para mim. Agora! E se eu não contar ao teu pai tens tu muita sorte.

Com a vergonha estampada no rosto António despiu-se em frente à sua avó, entregou-lhe as roupas da mãe e entrou no banho.

- Quero isso tudo bem lavado. Ouviste?
- Avó Lurdes não conte ao pai. Não foi por mal.
- Vou pensar no que fazer. Mas agora limpa-me essa porcaria da cara.