ACORDAR

Era bom estar de volta. Pisar de novo aquelas ruas, voltar a sentir aqueles cheiros, aquele sol que lhe banhava a face e os braços agora desnudos. Sentir que não estava perdido, que reconhecia os lugares, as avenidas, as pessoas...

Na rede deixou-se cair em pensamentos. Era inevitável. Tinha chegado há três dias mas nunca poderia esquecer o passado. Toda essa vida que o atormentava e não deixava a sua cabeça descançada. O que fumenta o presente é o passado. É ele que lhe dá vida. É como um livro que só se escreve mediante a existência de um escritor. Sem ele nada faz sentido. O problema está em conseguir viver o presente quando a cabeça não sai do passado. Tantas coisas que ficaram por fazer, por dizer, por explicar, concluir, começar, recomeçar. Ele sentia o mundo a girar não fazendo parte dele. Estava ausente do curso natural do tempo e da vida.

- Acorda! - dizia-lhe uma voz ao ouvido.
- Estou acordado - respondeu irritado.

Não era uma pessoa fácil ao acordar. Mas sabia que a voz não se referia a um acordar físico, mas sim a um acordar mental. Olhou à sua volta, à volta da sua alma e tentou decifrar os pequenos sentimentos que por ali pairavam como pequenos bichos voadores. Os sons que emitiam começaram a tornar-se ensurdecedores. Não se conseguia concentrar. Acorda!, pensou para si mesmo. E os seus olhos abriram-se e os sons à sua volta pararam. Tudo ficou em camara lenta. Deu por si a admirar cada bichinho voador, um por um. Estava na altura de se examinar. Só assim saberia não estagnar.

Existem certos momentos na vida em que precisamos de fazer uma pausa, avaliar tudo o que fizémos, para poder avançar. Quando perdemos muito tempo no passado sem fazer a pausa efectiva corremos o risco de ali ficarmos presos.

DOMINÓ

Nunca sentira o seu peito incendiar-se daquele modo. Uma ânsia que aos poucos se alastrava e retirava do corpo a essência que o fazia respirar. Os olhos sentiram-se cansados e só não adormeceu pela incapacidade do seu corpo de responder a tais desejos, pois isso seria estar a dar a si algum prazer. Não estava em si privar-se do prazer que isso seria coisa ridículo de fazer, estava no seu corpo em rejeitar esse prazer por uma opção que ele não compreendia. Talvez um aviso das suas células a alguma situação que ele não estava a prestar atenção. E deixou-se estar com a face colada na janela a ver as nuvens e o céu. Essa imagem acalmava-o.

As suas crenças tinham sido derrubadas como peças de dominó. Uma por uma até estarem todas completamente atafulhadas umas nas outras, sem ordem ou lógica. Durante um tempo não mexeu nelas, simplesmente as olhou, percebeu como tinham chegado àquele estado. Tirou as suas conclusões, aprendeu as suas lições e chegara o momento de as recolocar, reordenar, redistribuir e entender qual a nova construção que lhes iria dar. Queria uma construção simples, sem labirintos, refúgios, cantos escuros, portas fechadas ou peças fantasmas. Queria poder ver-se de todos os lados em espelhos que mostrassem todos os ângulos sem artifícios, manhas e mágicas assumindo os defeitos, as marcas, as dores. O dominó havia sido derrubado e era tempo de o ajuntar.