O ÚLTIMO DIA

Preparo a casa para a grande noite. Como se esta não fosse apenas mais uma noite. Devia começar a celebrar as passagens dos meses, das semanas ou mesmo dos dias. Mas é agora ou nunca, a contagem já começou... e que ano. Como conseguem caber tantas coisas num espaço tão pequeno? Afinal o que é um ano numa vida, o que é uma vida no meio de tantas outras, o que somos todos nós no meio do universo? Uma migalha! Mas uma migalha que nos dá tantas dores de cabeça.

Deixei de acreditar em Deus mas ainda ontem à noite lhe pedi que curasse a minha gata. Não sei porque o fiz, as palavras saíram-me da boca, como uma necessidade compulsiva de que exista algo maior que nos dê uma mãozinha quando precisamos. Não, não voltei a acreditar em Deus. Quero sim acreditar nas pessoas. E espero que quem tenha receitado os comprimidos tenha feito a escolha certa.

Antigamente agradecia-se a Deus à hora do jantar por mais um dia que tinha passado, por podermos ter mais uma refeição à mesa e por continuarmos todos juntos. O acto em si era bonito, mas havia qualquer coisa de errado nas palavras. Desvalorizava-se o esforço de todos nós para que viver fosse possível. A partir de hoje vou agradecer todos os dias às pessoas que me rodeiam, por sorrirem para mim, por chorarem no meu ombro, por eu chorar no deles, por se preocuparem comigo, pelo amor que me dão, por se esforçarem todos os dias por serem melhores pessoas, por darem tudo para que viver seja um momento feliz.

A todos os que me acompanharam na jornada que foi este ano um muito obrigado. Todos juntos fazemos a diferença. Todos juntos somos melhores, somos especiais, somos uns dos outros.

P.S.: Desculpa lá Deus qualquer coisinha! Mas ficas convidado a juntar-te a nós. Onde comem dez come mais um. Ah... e não te esqueças da gata!

ADEUS, ATÉ AMANHÃ

Vou-me embora, disseste tu, querendo saber... não quero mais saber de ti. Mas a verdade é que nunca foste embora, continuas a bater-me à porta de tempos a tempos. Entras e sais deixando vestígios de que aqui estiveste. Esses vestígios encostam-me a ti, encostam-me a uma esperança... eu que nunca quis ver-te partir. Se é para te despires, despe-te e faz amor comigo. De outro modo diz-me adeus de uma vez por todas. Todos sofremos, todos choramos, mas também rimos e queremos ser felizes. Por isso ama-me ou odeia-me.

Liguei à Elisa para me ajudar a empacotar as minhas coisas e fui até à Baixa fechar as contas do banco. Não se trata de arranjar mais um psicólogo, não se trata de mais um compromisso. Não és o único que está ferido e não sei mais que raio hei-de fazer. Acho que nunca viste até onde a minha fenda abriu, nunca soubeste que fiquei sem corda para puxar e eu não te podia salvar... Foi o que sempre quiseste, mas eu não te podia salvar não importa o que tentasse. Tudo o que pude fazer foi amar-te e deixar-te ir. Não importa o que tentasse, tudo o que pude fazer foi amar-te, meu deus, amei-te tanto. Podemos discutir ou podemos esperar ou podemos partir...

PALAVRAS DE CIGARRO FUMADO

“...estarei eternamente à procura de o reconhecer num outro corpo e numa outra cara...”
- Não tenhas pena de mim, estou só cansado – disse-lhe.
“...olho para trás e parece que se passaram bem mais do que 23 anos...”
O cinzeiro brota palavras de um cigarro fumado, estou ausente.
“Como muitos gostam de referir nasci com os pés virados para a lua.”
Tenho o telemóvel cheio de inutilidades e a luz da cozinha treme.
É preciso mudar a lâmpada mas nunca tive jeito para essas coisas.
“Os tempos nem sempre foram os melhores mas soubemos dar a volta a isso.”
Não te aproximes de mim com voracidade, simplesmente aproxima-te.
São sempre as incertezas. É sempre a novidade.
“...a verdade é que a pessoa que eu amo não está comigo para experienciar tudo isto.”
Agora é só o fumo de uma beata mal apagada.

UM ANJO E UM DEMÓNIO NO OMBRO

Toda a minha vida tenho vindo a dizer que sou má pessoa. Que coisa mais ridícula de se dizer! Mas não sou ingénuo ao ponto de afirmar que nunca magoei ninguém. Pois magoei e arrependo-me. Mas nos últimos dois anos tenho vindo a tentar mudar essa imagem que tenho de mim mesmo. E é horrível quando temos tais pensamentos sobre a nossa pessoa. Não me caía muito bem dizer-me má pessoa. Comecei então a tomar mais consciência das minhas atitudes, da forma como tratava as pessoas e de como vivia o meu dia-a-dia. Essa tomada de consciência levou-me a muitas questões, mas a principal de todas... terei eu sido, efectivamente, uma má pessoa?

Sempre fui uma pessoa forte e independente, trabalhadora e com os meus objectivos a alcançar. Para tudo isso nunca passei a perna a ninguém. Sempre me fiz valer pelo que era e nunca pelo que os outros não eram. Nunca sabotei ninguém para ser melhor. Sempre joguei um jogo integro.

No que toca às palavras sempre fui uma pessoa muito transparente. Mas essa transparência nem sempre foi bem aceite e durante uns anos, após várias criticas, tentei ser mais politicamente correcto. Aconteceu que por vezes senti-me a viver pequenas mentiras por não dizer aquilo que me ia na alma. Mas já estava no jogo social e hoje, por vezes, quero dizer o que penso e sinto-me travado pela história do “não precisas de dizer isso que não vai fazer bem à outra pessoa”. E sinto cá dentro uma raiva de mim mesmo. E por tantas coisas que não disse acabei por me tornar a pessoa “boazinha”. Acontece que isso fez com que desse abertura às outras pessoas de serem as “mazinhas”. Mas como sempre fui forte para aguentar muita coisa deixei-me ir e ouvi de tudo nos últimos tempos.

E foi aqui que me pus a pensar... as outras pessoas agora são eu. As outras pessoas, tendo oportunidade, estão a ser exactamente aquilo que eu era. Seremos então no fundo todas más pessoas à espera de uma oportunidade? Ou estaremos todos travados nas línguas de dizermos o que pensamos para não magoar até encontrar alguém forte que aguente a verdade?

Eu considero-me uma pessoa forte que aguenta essas verdades e sendo que agora até me mantenho socialmente correcto sou o alvo ideal para fazerem de mim gato sapato. Mas a verdade é que basta! Porque por mais forte que uma pessoa seja não pode deixar que lhe digam coisas e ficar a pensar: «pronto, esta pessoa precisava de dizer isto para se sentir bem e eu até me aguento». Dar esta abertura aos outros é o fim da parada. E quando dei por mim as coisas estavam a tomar um rumo muito estranho... Basta!

A ARTE DA FALA

Existe um certo mistério no que toca à arte da fala, da comunicação. A forma como nos expressamos para com os outros é, de todo, uma arte a ser explorada, trabalhada e refinada. Afinal, a fala sustem as relações entre as pessoas.

Sabemos o significado das palavras, sabemos juntar palavras e construir frases mas saberemos realmente falar? Falar não é mais do que saber ouvir. Acredito estarmos a entrar numa fase em que as pessoas deixaram de saber comunicar, deixaram de saber cativar. Falar não é mais que dançar, a graciosidade dos gestos que ondulam em combinações harmoniosas, caóticas, lentas e demoradas, rápidas e vibrantes. Falar é tocar notas em contratempo, é o ajuste do corpo à harmonia sincopada. Falar é mais do que debitar palavras, umas a seguir às outras, vómitos de nada, dejectos inúteis.

Coexistir no mundo das palavras não é fácil. Vem-me à cabeça a imagem de mil palavras empoleiradas no meio de pessoas. Os gestos que cada pessoa faz para reunir entre elas um consenso. A dança de corpos e contra corpos em busca de algo, os rituais de acasalamento dos animais, a concisa melodia dos pássaros num embalo matinal. E no final, quando todas as palavras foram usadas aparece a arte do silêncio...

LOVE ME LOVE ME NOT

- Gosto de ti.
- Eu também gosto de ti.
- Então porque é que não gostas de mim?
- Porque não gosto de ti da mesma maneira que tu gostas de mim.

UM POUCO DE TUDO

Nunca sentimos tudo ao mesmo tempo, vamos sentindo
Porque o tudo que sentimos deixa margem de manobra para sentirmos mais um pouco
Se tudo estivesse na balança não sobraria nada
Assim sentir tudo é sentir um pouco de tudo
E um pouco não é tudo
É um pouco

PORQUE É QUE AS PESSOAS FICAM BONITAS QUANDO CHORAM?

Querido professor,

ultimamente tenho observado muito as pessoas, assim como pediu. Eu sei que devíamos ter em atenção a procura da beleza nas características físicas para que chegássemos a um consenso na classe. Contudo, ouve uma característica que me chamou mais a atenção que todas as outras. Não é bem uma característica física, é mais fisiológica. Na verdade, todos sentimos a necessidade de chorar. Podemos não o fazer, mas o sentimento está lá. E todos chorámos uma vez na vida quando saímos do útero da nossa mãe. Logo, é uma característica comum a todos. O que me tem intrigado nestas observações é que as pessoas ficam mais bonitas quando choram. Não digo depois de chorar. Falo no acto em si. Parece-lhe estúpido?


Querido aluno,

não se sinta estúpido por pensar nesse tipo de coisas. O objectivo do trabalho era fazer-vos perceber a subjectividade da beleza. Queria que concluíssem que a beleza tanto pode ser física como emocional. Que não existem padrões. De certa forma libertar-vos para um estado superior do entendimento desta. Que é possível ficarmos atraídos por um pessoa, a qual nada diz ao nosso melhor amigo. Que não devemos ficar restringidos aos gostos uns dos outros. O que mais me deprime é sentir que alguém fica envergonhado por gostar de pessoa A, B ou C. E a sua questão é muito pertinente. Posso mesmo dizer que me deixou a pensar. Quando choramos é porque libertamos energias negativas do nosso corpo, ou mesmo direi, da nossa alma. Tornamo-nos assim pessoas menos carregadas. E é essa leveza que eu acho que o fascina. Estarei correcto?


Querido professor,

não estou certo de que seja a leveza que me fascina. O professor já viu, alguma vez, com atenção, a foto de alguém a chorar? Ou já parou para apreciar alguém que estivesse a chorar sozinho num banco de jardim? Ou mesmo alguém que tenha passado por si a correr lavada em lágrimas? São momentos em que o nosso sentimento de pena, o que eu acho asqueroso, vem ao de cima. E no meio de tanta tristeza é como se o tempo parasse pois algo de belo está a acontecer. O que me fascina, ou perturba, é o acto em si. O verter das lágrimas. A razão que nos leva a chorar. Quando são lágrimas verdadeiras isso torna-nos pessoas bonitas. Choramos porque compreendemos um pouco mais da vida. Quando choramos apresentamos as feições mais gastas da nossa cara e ao mesmo tempo as nossas verdadeiras feições. É como se retirássemos as mascaras que usamos no dia-a-dia. Ficamos nus em frente de toda uma multidão ou mesmo nus perante nós. O nosso corpo fica transparente permitindo espreitar por todo o seu funcionamento. E é isto que é belo. A confiança com que levantamos a cabeça quando limpamos os restos de água salgada que não fugiram do rosto.

Tenho uma confissão a fazer-lhe. Quando o vi chorar no outro dia apaixonei-me por si. Deixou de ter a mascara para passar a ser uma pessoa exposta ao mundo. Passou da rigidez para a beleza. Eu vi a beleza.


Querido aluno,

penso que estamos a ir longe demais nesta troca de e-mails. O seu ponto de vista é bonito demais e de uma pura sensibilidade, mas eu jamais poderei ser amado por um aluno.


Querido professor,

pensei que quisesse demonstrar com este estudo que a beleza vai para além do corpo. Mas apercebo-me agora que não passa de teoria para si. Algo que lhe foi destinado a ensinar, não a apreender. De qualquer modo o professor foi belo enquanto chorou. Devia chorar mais vezes.

A HISTÓRIA DE MATT WEDLER

- Se o teu sangue... fosse o meu sangue ardíamos juntos na mesma fogueira. Brasa quente na minha pele, o teu corpo... junto ao meu corpo. Planícies desertas, sedentes de beijos, noites brancas no escuro. Estrelas que imaginámos... Lugar algum que cumpra as fantasias dos sonhos, das utopias e agora que te perdi... Lançaste as cartas do destino, os dados viciados em jogos nocturnos, o sexo maltratado, usado sem pudor. Na tua voz, a poesia era veneno!

Não é fácil ver o céu ser pintado de preto. O teu corpo sem alma por entre os lençóis. As trevas nascem em meu redor. As cartas que li do teu desespero:

“Enquanto sinto a minha vida a desaparecer um vasto rasto de memórias fazem chorar o meu coração. Saber que aprendi a amar e saber que é possível amar alguém... o que eu não daria para acordar. Acordar desta peste que consome o mundo. Sentir a evaporação dos objectos que me rodeiam. Ser presenteado com a dança da morte e ver-me partir sem resgatar um último beijo teu...

...Se o teu sangue... fosse o meu sangue ardíamos juntos na mesma fogueira. Brasa quente na minha pele. O teu corpo... junto ao meu corpo. É o amor em estado puro.

Nojenta é a imagem do meu corpo quando o olho ao espelho. Carne carcomida pelas impurezas do mundo. Corroída, esfaqueada, consumida. E quando para mim olhares já não serei eu e por momentos a pessoa que amas já não existe... Já não lhe pertence a mão que escreve estas palavras”

Samuel parou de tocar piano.

- Então a quem pertenceram as mãos quando me escreveste a carta? Se já sabias a merda que isto ia dar porque é que te divertiste a ver-nos crescer? Se julgas que serei a tua cobaia, estás muito enganado. Não sou a marioneta de ninguém. Se queres respeito, respeita-nos!
- Samuel precisas de descansar. Vou levar-te a casa.
- Percebes o que quero dizer? É muita dor acumulada num mesmo coração. Nunca tiveste ninguém a morrer ao teu lado e mesmo assim a sorrir para ti e a dar-te força.
- Não, nunca tive. E nem alcanço o teu desespero. Mas tens de ir dormir. Vai fazer-te bem.
- Não queria ter de acordar amanhã. Não para viver nesta mesma vida.

SÓ AMIGOS

Como eu era em 1972 e muito tempo já passou
As cartas queimadas em fogueiras juvenis
São o passado não muito distante
Entre um depois e um antes que nunca chegou a ser nosso
Amigos sem amor
Casámos em sentimentos de criança, casámos e cansámo-nos
De tudo, não de tudo, de um pouco
Do que seria o nosso futuro
Prometido a muitos
Sem nós nem laços de gravata
Subimos a rua que ia em direcção ao café
E o mundo que nos cercava era estranho
Já na altura
Tu com ela e eu com ele
Sem vista a um ponto final
Um stop
Certeiro no meu caminho, infinito no teu
As memórias recordadas num jardim de Inverno
Na noite de chuva e de luz
O correio atulhado de presentes nunca abertos
E o sábio discurso de pais abandonados do amor dos filhos
Partimos no comboio para fugir
Mas não chegámos nem à estação sem que disséssemos adeus
E as voltas que demos
São as voltas de um árduo destino por concretizar
Era certo que um dia chorarias a meus pés
Com lágrimas suficientes para alagar a minha casa
No sofá cama onde te deitaste para assistir ao ridículo jogo que passava na televisão
Sem comida nem bebida apenas o tabaco a encher o espaço vazio entre nós
Entre o teu coração e o meu sofrimento
Fiz-te o café da manhã para que tudo parecesse perfeito
Sem efeitos especiais ou cortes cinematográficos
Mas não ficaste mais uma vez
A porta já estava aberta e tu pronto para sair
E no chão de mosaicos da casa de banho fiquei deitada
Estava fresco e eu tinha calor
E dia após dia voltavas com o mesmo sonho
As mesmas recordações os mesmos desgostos
E ao ouvir por mais uma vez o som da porta
Escorregadia
Esgueirei-me para a sala e surpreendi-te com um jantar que ficou para a história
Belos poemas foram as nossas palavras
E sem a mínima intenção de te ferir espetei-te uma faca no peito
Não uma faca, um desejo realizado
Mas para ti a vida continuava e mais uma vez partiste
E de dia para dia cravava mais fundo a faca
Não só em ti
Em mim também cravei para que fossem visíveis as marcas
Mas éramos só amigos
Dizias tu – Só amigos
Sentei-me na janela a ver a chuva cair
Que coisa mais patética ver a chuva a cair
E que tinha de errado a chuva a cair
Nada
Era apenas chuva e estava a cair
Como eu estava a cair aos bocados
Primeiro a mão direita
Depois a mão esquerda e assim em diante
Os pés, o sexo, a cabeça…
Quando me viste pela última vez era apenas pedaços
Estendidos à tua frente prontos para te receber
E mais uma vez entraste triunfante pela sala
Ligaste a televisão e disseste que precisavas de um tempo
Todo o tempo era para ti
Que podia eu fazer senão olhar para ti
O teu corpo difícil de entender
Os teus olhos ambíguos
E provavelmente já não saía de casa com medo de não estar para te abrir a porta
De não estar para libertarmos poesia pelos poros
E era poesia de dois caminhos afiados
Já não quero saber dele
Dei por fim a uma magia fingida em retalhos de tecido foleiro
Foi o seu corpo que me disse que o fizesse
É sempre o corpo que nos diz o que temos de fazer
Sem sentir um único arrepio disse que já não o queria
Que queria viver sem morrer vezes sem conta
Para que tu e eu sobrevivêssemos ao naufrágio que estávamos a germinar
E não passei de uma cabra lamechas
E por fim fodeste com uma puta e arrependeste-te
Não mais eras digno de amar
E ela naufragou assim como eu
E a minha porta ficou aberta dias sem fim
Esperava que desses entrada
Mas tu não apareceste
Éramos só amigos dizias tu
Só amigos.

A HISTÓRIA de Brandi Carlile

“Todas as linhas que marcam a minha cara contam a história de quem eu sou. São tantas as histórias dos lugares onde estive e de como cheguei aqui. Mas estas histórias não têm qualquer significado quando não tens ninguém a quem contar. Eu subi até ao pico das montanhas, nadei por todos os oceanos azuis, passei os limites e quebrei todas as regras. Tu vês o sorriso que está na minha casa, ele esconde as palavras que não saem. E todos os meus amigos que pensam que sou abençoado... eles não sabem que a minha cabeça está uma confusão. Não, eles não sabem quem realmente sou e pelo que passei, não como tu sabes...”

HORAS ANTES

Hoje quis dizer que vos odeio, mas a verdade é que não vos odeio e por isso não faria sentido dizê-lo. Mas por momentos senti que vos odiava. O cansaço leva-me a um esgotamento mental onde os dados não estão a ser arquivados da forma mais correcta. A catalogação está errada... mas podiam pelo menos ter celebrado comigo as felicidades da vida, podiam ter mostrado o mínimo de interesse, podiam ter-me ouvido durante dez minutos. Mas os dia foram demasiado rápidos, em tudo as horas voaram. Partiram, saindo pela janela, até ao sul. Assim como os patos, as horas também partiram para o sul. Estou cansado. Dói-me o corpo, dói-me a cabeça, dói-me a alma.

Horas antes ligo-te para dizer que temos de trocar a reunião para segunda-feira. Digo-te que ando cansado ao ponto de me ter esquecido que o concerto da Madonna é na mesma hora a que marquei a reunião. Tu ententes e soltas um riso. Desligo o telemóvel e penso que tenho mesmo de comprar uma agenda.

Horas antes tinha estado com alguns amigos a rir no café e a falar dos novos projectos. Estamos todos com vontade de trazer algo novo. E mesmo com falta de dinheiro tentamos repensar como será isso possível. Mas olhamos uns para os outros e estamos confiantes. Sorrimos. O mundo não é assim tão escuro.

Horas antes estou a sair do Atelier com o meu portfolio na mão. Saio do atelier que será o meu trabalho nos próximos tempos. Estou muito contente. Entro no carro e fumo um cigarro andes de arrancar para o café. Tento recapitular tudo o que tenho para fazer para não me esquecer de nada.

Horas antes estou no lux. Recordo algumas memórias e partilho-as contigo. Não sei porque as partilho. Tu também recordas algumas das tuas memórias. Comemos uma tosta e ainda rimos um pouco. Pedem-nos um cigarro e não damos. Passámos a noite a dar cigarros e só temos mais três. Os outros ficaram na pista a dançar. Estão drogados. Nós não estamos. Falo-te do gato. Do pobre do gato que nada tem a ver comigo e eles. O gato está perdido no meio.

Horas antes sou o Andy Warhol. Tu és a Cher e ela a Bela Adormecida. Tento imaginar como é que estas três pessoas se dariam se fossem amigas. É claro que penso na Bela Adormecida depois de acordada.

Horas antes estou perdido em Lisboa. Tento chegar ao estúdio mas o GPS falha. Estou cansado e não consigo pensar. Porque é que esta merda não funciona? Encontro. Converso. As coisas ficam decididas. Marco na agenda mental que tenho de ir comprar amostras de tecidos e aviamentos. Alguns dos coordenados têm de ser corrigidos. Marcamos uma segunda reunião para domingo.

Horas antes estive a ver o espaço onde vou expor o meu trabalho. O ambiente é estranho. Fui seleccionado. Agora tenho de me desenrascar. Tira algumas fotografias e vou tendo algumas ideias. Nunca acreditei que tão cedo estaria aqui. Rio comigo mesmo.

Horas antes o gato tenta brincar comigo mas estou tão chateado que acabo por desprezá-lo. Mesmo assim ele fica sentado a olhar para mim em tom brincalhão. Atiro a bola para o outro lado da casa e espero que ele não volte. Ele não volta.

Horas antes descubro que a surpresa não era para mim. Então não era uma surpresa para mim. Era uma surpresa para vocês. Vocês apenas queriam que eu visse a vossa surpresa. Cai-me tudo. Olho para a casa, olho para eles, olho para mim...

Horas antes ligam-me e dizem que têm uma surpresa para mim. Sorrio. Pergunto o que é e não me dizem. Insisto, estou curioso. Um gato. Pego no carro e vou a voar ter com vocês.

PÉS E GATOS

Raio e coriscos. Tudo muda. Tudo é vida alternada de um outra vida. Tinha uma vida. Tinha um mundo. Tinha esperanças e sonhos. Hoje tenho outra vida. Tenho outro mundo. Outras esperanças. Mas olho para trás e vejo que os sonhos são os mesmos. E repito na minha cabeça dia após dia. Certifico-me de que ainda é neles que acredito. Os sonhos. Por vezes desconexos. Por vezes em perfeita sintonia. Liberdade. Amor. De tudo. Para tudo. Tento encontrar significados para as coisas. Abraçar sem deixar cair. Saltar para o outro lado do muro. Há revolta. Há sempre revolta. E salto planícies. Campos. Cidades. Abismos. Voo sobre os rios. Mares. Oceanos. E sinto o vento. E sinto-te. Sei que estás lá para mim. Ouço a tua voz. Ouço o teu respirar. E a brisa corre. Dissipa-se. Mas ficaste. E adormeço. Adormeço melhor por saber que não estou só. Mesmo quando estou. Olho à minha volta. Esta é a minha vida. Ponto de partida. Avançar. O sinal está verde. Mas o pé tem medo de carregar no acelerador. O pé sente aquilo que o coração sente. O pé avisa. O pé não é só um pé. E vejo-te a viver a minha vida. A minha casa. O meu amor. O cheiro das coisas que em tempos me fizeram sorrir. E deixaste-me de rastos. Cada convite teu para viver a tua vida é um convite que aperta no peito. Tu agora és eu. E eu agora sou tu. O gato. A manhosa farsa que me atacou. E se não chorei foi porque não quis. Mas sou feliz por ti. Sou feliz porque tenho a brisa que me acalma. Não somos inocentes. Os maus sentimentos também nos atravessam o espírito. Digo ao pé para avançar. Ordeno-o.

COINCIDÊNCIAS

Há dias em que acordo e o mundo simplesmente deu uma grande volta... É então que saio para a rua e reparo que o céu está azul, as pessoas andam vestidas e os carros fazem barulho. Como pode isto ter acontecido? Como deixei as coisas chegarem a isto e ter-me deixado dormir? Mas mesmo surpreso com a ideia de estar calor num dia de sol subo a rua e estranhamente encontro-o. Que surreal! Ainda ontem havia recebido uma mensagem a falar sobre ele. Digo-lhe olá, esboço um sorriso e sigo em frente contudo tenho tempo para reparar que usa o mesmo perfume que eu. Volto atrás e pergunto-lhe, Foste tu que me ligaste e não disseste nada? Do que estás a falar, responde ele. Nada, digo eu, esquece, desculpa ter-te importunado, sê feliz. Sigo pela rua fora até ao comboio a ponderar as possibilidades matemáticas da existência de coincidências. E se as coincidências são muitas deveremos duvidar delas enquanto coincidências? Existirão mesmo coincidências ou somos simplesmente nós a criar ilusões onde elas não existem, a criar vendas para os olhos para tapar as coisas mais óbvias?

Quando me sento no banco do comboio já penso no destino e nas coisas que nos estão pré-destinadas a acontecer. Mas ao ouvir o ruído do comboio tomo consciência de que supostamente estou destinado a ir até ao cais do Sodré a não ser que saia antes. Mas se o destino nos leva para onde devemos estar como terei eu livre arbítrio? E será que o destino nos leva até às coincidências, ou simplesmente nos leva a abrir os olhos e a ver a realidade e nós é que nos limitamos a dizer... ah... foi coincidência? Já no cais do Sodré apercebo-me que este tempo todo tenho andado a passar por parvo nas mãos de alguém que me faz acreditar em coincidências... (quando é tudo tão óbvio) e o mais triste é que me deixo consumir. Será o amor também uma coincidência?

Saí da estação e o céu estava verde, as pessoas nuas e os carros deslizavam silenciosamente... finalmente um pouco de realidade!

PUTAS E AFINS (Parte 2 - 4 de 4)

VAI PARA A PUTA QUE TE PARIU
IV. A MÃE
Que puta! E nem em sonhos duvidei.
As histórias dos contos de fadas já não são para uma mãe.
São para as meninas, para as virgens, para as tontinhas, para as coninhas.
Não para uma senhora a quem o ventre foi rasgado à faca a sangue frio
Numa longa manhã de Inverno. Não para mim.
Vi o meu feto ensanguentado e nojento, vi-o assim para dizer nunca mais
Ao descuido prematuro, às emboscadas inoportunas, ao meu amor por ti.
E tiveste logo que te aventurar em putices de menor grau
Como te havia ensinado a repudiar, a rejeitar, a dizer
Um simples e tão útil: Não!
Mas para ti
A rameira sou eu que depositei esperanças e vi-te partir
A rameira sou eu que chorei por ti.
A rameira sou eu que te amo.
A puta que te pariu!

PUTAS E AFINS (Parte 2 - 3 de 4)

VAI PARA A PUTA QUE TE PARIU
III. O MELHOR AMIGO
Já estava de partida quando a porta bateu feroz na moldura.
O trinco fechou e as vozes cessaram, até na televisão.
Tinha estado a ler um livro de terceira categoria que me animava a vista,
Desconcentrava-me do mundo e desejava-me boa viagem.
Partiria para Coimbra no comboio que iria apanhar na estação do oriente.
As despedidas foram por telefone, e por telefone as mágoas,
E os seus seios desnudos plantaram-se na entrada da sala convidando-me.
Vai para a puta que te pariu, como és bela! E eu fui um monstro.
Teci ali o finito de uma relação e o prazer de dois corpos
Em lume brando cativos num quarto triste…
Num jogo novo para estrear.
E o calor da cama estava tão bom!

PUTAS E AFINS (Parte 2 - 2 de 4)

VAI PARA A PUTA QUE TE PARIU
II. A MULHER
O teu melhor amigo é sublime.
O teu melhor amigo é desmedido.
E foi ao teu melhor amigo que me fiz puta pela primeira vez.
E agora que dizes das palavras? Meu amor?
Não corras para a mãe…
Ela já correu de ti há muito tempo quando casaste comigo clandestinamente.
O amor tem destas coisas.
O amor dói.

PUTAS E AFINS (Parte 2 - 1 de 4)

VAI PARA A PUTA QUE TE PARIU
I. O MARIDO
Ainda ontem nos sentámos à mesa e hoje também, que é feito das recordações?
Bastou uma hora para que te enfardasses de mim e o teu corpo expelisse todos os sentimentos.
Só gostava de saber quem é o cabrão!
Quantos minutos fui realmente teu? Gostas de putas? Queres ser uma puta?
Então abre a porta, desce a rua e vende o que ainda resta de ti.
Um corpo asqueroso, inútil, usado, rafeiro, gasto…
Não tentes lavar-te pois há imundices que se agarram para nunca mais largar,
Como a boca que usas para maltratar as palavras.
Elas matam. São mortes lentas. E eu estou a morrer… de ti.

PUTAS E AFINS (Parte 1 - 3 de 3)

MEU AMIGO MEU AMOR
3. A PUTA
A visão de uma puta não passa da visão de uma puta
O amor de alguém não passa do amor por alguém
Sentia na pele os beijos arrastados
Tremia de encanto ao vê-lo enamorado
Sabia o veneno das suas composições
E em todas as posições sentia um aperto

O seu sexo era infantil
Enfatizando em cenários de filmes eróticos
O seu paladar era forasteiro
E o seu coração nunca me pertenceu.

Confissões de uma puta num jornal
Alta, magra, olhos azuis
Corpo afinado e desejos de amor
Sou tua e levar-te-ei ao fim do mundo

E para quê?

A amizade morreu

PUTAS E AFINS (Parte 1 - 2 de 3)

MEU AMIGO MEU AMOR
2. O OUTRO
Meu amigo meu amor temos de conversar
Meu amigo meu amor o tempo está a mudar
O sol lá fora deixou de brilhar
A noite acompanha-nos...
Em momentos de conversas
Horas dispersas

Meu amigo meu amor vamos com atenção
Meu amigo meu amor abre-me o teu coração
Vive comigo uma história de amor
Sente o abraço que tenho para ti
Belas horas passadas no café
a fumar e a beber

O que tu queres tens medo de dizer
O que tu fazes não precisas esconder
Fazes recados... erradicados
De uma sociedade aparentemente feliz
Dou-te uns conselhos... pedidos alheios
Para não deixar o amor morrer

Meu amigo meu amor encosta-te ao meu ombro
Meu amigo meu amor chora o quanto tens direito
A noite vai dentro vestida a preceito
Mas a tua roupa tem gotas do meu sangue
E a tua alma tem o ardor do nosso amor


PUTAS E AFINS (Parte 1 - 1 de 3)

MEU AMIGO MEU AMOR
1. ELE
Putas e rimas num quarto fechado
A porta trancada e um resto de céu
Beijaste-lhe a mão e um sopro apagou a vela
Que a mãe deixou na mesa quadrada
Com fotos escuras tiradas na polaróide
Comprei-ta nas férias do verão em Ibiza
Éramos amigos do Marco e da Rita
Cabelos dourados empoleirados em cordas azuis

Abraças e beijas como um animal
Não ouviste as notícias no telejornal
Não mordas que aleijas os corpos tão puros
Das putas tão virgem
De sexo inseguro

A semana passada não lavaste os lençóis
Cheiravam à Preta dos peitos redondos
E o lenço da Vanda também lá ficou
Entranhado no cheiro do cheiro das coisas
Que guardo no peito só de me lembrar

Vão-se as Putas e as rimas do quarto
Entro devagar para não te assustar
Estás deitado no chão completamente enfrascado
A cabeça no duche de água fria
E o tempo lá fora convida-me a te deixar
Fodido no chão da casa de banho e então?

Não sei do teu livro ou sequer do teu coração
Pela sanita jogaste os dois
Quais dados que dantes lançávamos no casino
A Rute e a Lia faziam por gostinho
Umas vezes na minha e outras na tua
As mães de saída e os pais divorciados

Quem toma conta de ti se eu desaparecer?
Nunca te disse que a puta mais puta sou eu?
A ver-te morrer, a ver-te sofrer, sem nada dizer?
Cara apática, sem expressão de rosto,
Cabelo frisado do dia anterior
E o sangue sujou o chão e então? E então?

Podes sujar que eu limpo
Sempre fui o teu empregado
E o chulo para as putas e a musa para as rimas
E agora solto uma lágrima ao ver-te morrer.

PORQUE É QUE AINDA NOS DAMOS AO TRABALHO DE FALAR?

SÍLVIA Meia hora Lourenço! Mais um minuto e nunca mais terias a minha companhia. Já estava a arrumar a mala. E era escusado telefonar porque eu não iria atender. Consegues perceber o quanto estou irritada? Agora se não te importas preciso de ir à casa de banho.
LOURENÇO
Fico aqui à espera.
SÍLVIA
Tu não sabes o que é esperar!
LOURENÇO Devo pedir alguma coisa?
SÍLVIA
Tu sabes o que eu bebo, não sabes? Então vai pedindo.
LOURENÇO
Gin tónico com 7up…
SÍLVIA E LOURENÇO
Sem gelo!
LOURENÇO
Eu sei.

Sílvia sai.

LOURENÇO Boa noite, são dois gins tónicos com 7up um com gelo e o outro sem. Obrigado.

Sílvia volta da casa de banho.

SÍLVIA Então e ainda andas a comer a cabra da minha irmã?
LOURENÇO
Por amor de Deus Sílvia. Não vim aqui para falar da tua irmã.
SÍLVIA
Então quer dizer que andas!
LOURENÇO Eu não disse isso. Fomos para a cama umas quantas vezes, nada que eu não possa evitar.
SÍLVIA Eu sabia! Não tenho mais nada a dizer. Podes pagar as bebidas que eu vou andando. Sabes sair daqui? Basta desceres pela rua e virares à direita…
LOURENÇO
És sempre assim tão decidida. Pensei que havia em ti uma réstia de sentimentos por mim.
SÍLVIA
Olha lá meu lindo, eu gosto de ti e tu sabes, apenas não gosto do gajo que anda a comer a minha irmã. Fui esclarecedora?
LOURENÇO
O mais possível. Sabes que eu só tenho olhos para ti, mas um gajo tem as suas necessidades. E tu nunca quiseste assumir o namoro. Querias que dissesse o quê à tua irmã? Olha não te posso comer porque ando com a tua irmã mas ela não quer que tu saibas.
SÍLVIA
Então e qual é a rata que mais gostas de comer?
LOURENÇO
Desculpa!
SÍLVIA
Ratas! Nunca ouviste falar. Aquelas fissuras que as mulheres têm entre as pernas e que deixam os homens loucos. (Nunca percebi porque lhe chamam rata!) Queres que te mostre ou tornaste-te num senhor pudico?
LOURENÇO
Estás a passar-te não estás? Mas que merda de conversa para uma noite de sexta-feira. Se era para aturar isto não tinha vindo.
SÍLVIA
Então? Qual é a tua rata favorita? A minha irmã comentou que gostavas de a comer à frango assado. O que não deixa de ser curioso. A mim só me comes de quatro.
LOURENÇO
Desde quando é que vocês falam disso?
SÍLVIA Há muitas coisas que tu ainda não sabes sobre as mulheres.
LOURENÇO
Pelos vistos não. E sim, gosto de comer a tua irmã de frente, pelo menos não tem essas tuas mamas pouco práticas. Nunca discutimos isso antes, mas podias fazer uma operação.
SÍLVIA
Pensava que os homens gostavam de grandes mamas.
LOURENÇO
Grandes mamas sim! Mas estamos a falar da mãe de todas as mamas.
SÍLVIA
Podias ser menos ordinário.
LOURENÇO
Podia!
SÍLVIA
Ordinário!
LOURENÇO
Acho que estás a precisar de outro gin. Era mais um aqui para a senhora. Ainda estou para perceber se gostas realmente de mim. Às vezes penso que estou a perder o meu tempo. Não me dás nenhuma pista e só sabes falar da tua irmã.
SÍLVIA É mais do facto de a teres comido.
LOURENÇO És capaz de falar de outra coisa. Comer, comer, comer. É só isso que te vem à cabeça? Comi a tua irmã como podia ter comido outra qualquer.
SÍLVIA
O que interessa é comer? Certo!
LOURENÇO Eu não disse que o que interessava era comer. Só disse que comi a tua irmã como podia ter comido outra. Se tivesse comido a minha melhor amiga provavelmente não estavas para aí com esse discurso. Podemos passar esta história à frente? Pensa que te conhecia hoje e que te falava de uma ex minha que, por coincidência, era a tua irmã. A vida tem de andar para a frente. Eu amo-te.
SÍLVIA
Estou tentada a acreditar em ti. Eu também te amo. Contudo ainda não esqueci o problema das mamas. São assim tão grandes?
LOURENÇO
Um pouco desproporcionais. Nada que uma operação não resolva.
SÍLVIA
Para ti é tudo uma questão de dinheiro. Já pensaste que posso sentir-me bem com elas?
LOURENÇO
E sentes?
SÍLVIA Deixa de fazer perguntas oportunistas. Sabes bem que odeio as minhas mamas. Podias ser um pouco menos severo comigo. Afinal amamo-nos.
LOURENÇO
Eu não fui severo contigo. Tu é que tens sido severa comigo. E queres saber, gostei muito de comer a rata da tua irmã.
SÍLVIA
És um porco!
LOURENÇO
Então sê a minha porca.
SÍLVIA
Não tens sentido nenhum de romance? Dois porcos são para estar numa pocilga e chafurdar na merda.
LOURENÇO
Então vamos chafurdar na merda.
SÍLVIA
Eu dou-te a merda meu cara de caralho! Julgas que vens aqui, molhas o bico e desandas da minha vida? Eu quero um homem de verdade.
LOURENÇO
E o que faz de mim não ser um homem de verdade para me tornar num cara de caralho?
SÍLVIA
Não digas mais asneiras. Fode-me na casa de banho!

Dentro da box na casa de banho dos homens.

LOURENÇO Porque é que ainda nos damos ao trabalho de falar?
SÍLVIA Para nos sentirmos vivos.

DISSE ELE

Por favor. Apaga a luz e vem deitar-te ao meu lado. Está tão fresquinho aqui. Reparaste como hoje me esmerei no jantar? Fiz o teu prato favorito. Estava bom não estava? Ainda me vais explicar o que aprecias tanto num bacalhau à brás. Com tantos pratos para escolher tinhas logo de gostar daquele que os miúdos detestam. Às vezes pergunto-me se não fazes isso só para me irritares. Bem sabes o que eu os aturo depois. Eu sei que estás sempre a dizer que devemos educá-los a gostar de tudo pois tudo tem o seu valor na pirâmide alimentar, mas há coisas que eu também não gosto! E que mal tem isso. E o exemplo é muito importante. É claro que posso continuar a fazer só pratos que nós gostemos, mas um dia que eles descubram ficarão desiludidos e lá se vai a figura do pai e da mãe. Mas agora também não me quero preocupar com isso. Já viste como fico bonita com a luz da lua a entrar pela janela e a tocar no meu corpo. Tenho vestida a tua lingerie favorita. Podias pelo menos olhar para saberes que não estou a mentir. É aquela vermelha que tanto valoriza cada centímetro do meu corpo. Estou a excitar-me só de pensar em ti a lamber-me o corpo. A exorcizar-me a vagina retirando todo o prazer de entre os nossos corpos suados. Amor, olha como as minhas mãos acariciam os meus seios. Tu gostas deles, de olhar para eles, de beijá-los, de chupá-los. Olha para mim! Há quantas horas te vejo a bajular esse computador? Só pensas em trabalho? Eu sei que és a fonte dos nossos rendimentos. Que é à tua custa que temos esta casa, esta cama, esta lingerie, que eu tenho este corpo. Eu sei que tens imenso trabalho, mas isso não é tudo na vida. Relaxa-te um segundo. Relaxa-te comigo. Vamos acasalar nesta noite de lua cheia. Vamos ser cães e ganir. Os miúdos dormem que nem pedras, ferradinhos e a noite está maravilhosa. Ao menos diz-me que estás a ouvir? Sofro só de pensar que já não queres estar comigo. Que o teu trabalho é mais importante que eu, que a tua família, que os teus filhos. E bem sabe Deus como os fizemos. O mais velho foi na viagem para Nova Iorque. Mal chegámos e entramos no quarto do hotel disseste-me que querias ser pai e foi um dos momentos mais bonitos. E acabámos essa noite a ver o “Cats”. Lembras-te? Nessas férias perdemos o bom da grande maçã pois só pensávamos em fazer amor. Tínhamos acabado de casar. O do meio foi na Holanda. Fomos lá festejar o nosso quinto ano de casados. Ficámos tão pedrados que nos esquecemos de usar o preservativo. Nós e todos os outros. Ainda gostava de saber se o filho é mesmo teu… mas os olhos dele são iguais aos teus e por isso nunca pedi para fazeres o teste. O mais pequeno foi nesta casa. Comprámo-la e tinha um quarto a mais e resolvemos enchê-lo com o terceiro. Devo dizer que o mais bonito deles todos. Foi o que saiu mais a ti. Amo-te muito meu amor apesar de todas as discussões que temos. Mas deixa que te diga: nessa altura tratavas-me como uma rainha, e hoje, não passo da tua dama de companhia. Mas o meu amor por ti é maior que tudo e ainda sei ver o lado positivo deste nosso matrimónio. Por esta altura já tiveste tempo para desligar o computador e correres para o meu leito. Aqui te espero meu belo príncipe. Diz-me que ainda sabes deixar-me nas nuvens. Diz que me amas como na primeira vez. Sempre podemos deixar os miúdos na minha mãe e viajar pelo mundo. Era giro. Voltar a namorar. De mãos dadas pelas praias paradisíacas, pelas cascatas, pelas pradarias. Podíamos até comprar outra casa e começar tudo de novo num outro lugar. Podíamos…

Não sonhes mais comigo – disse ele.

CONFISSÕES D'ELE E D'ELA

ELE: Entrei pela sala do teatro, as cortinas vermelhas fechavam o palco, sentei-me na primeira fila a pedido do encenador e fui tentando apreciar cada momento. “Todos temos a mesma história”? Desde quando? Não desde a queda do meu primeiro molar. Não desde a morte do pai d’Ela. Não desde nunca. A história de cada um é o seu lugar sagrado. Um santuário repleto de imagens únicas e irrepetíveis. Imagens como o dente na mão do dentista agarrado a uma bola de pus. Este é o meu mundo e a minha história desde 9 de Junho. O dia em que tirei o primeiro molar.

*

ELA: Durante a tarde um suspiro reconfortante encobre-me a alma. Desejo que uma lágrima se arraste pelo meu rosto até embater no chão. E se sonho algum ousar enfadar-me a escuridão confesso-me ao diabo. Já não são horas de consolações humildes pois o meu pai morreu e o meu nome aparece listado nos pêsames do universo que me rodeia – são como letras flutuantes em muitas cabeças que se reúnem para tomar chá.

Suspiros vão e vêem sem significado aparente aos olhos descartados da visão. Incontroláveis são as memórias de um passado recente acorrentado em mim. Ainda nem senti a necessidade de expressar qualquer agressividade. Vejo a clareza nas formas e nos sentidos mais latos das coisas.

Digitei, em segredo, alguns números no telefone para amigos íntimos. Deixei na voz um rasto de melancolia saudável.

*

ELE: Como pude? Quando Ela me ligou desatei a chorar. Quando gostamos das pessoas sentimos a tristeza com elas… e eu não consegui evitar. Ela não chorou. Havia chorado antes, mas do outro lado do telefone nem uma lágrima brotou. Apenas a sua voz em tom pianíssimo, magoado, mutilado, sereno e sem uma pinga de água salgada.

Como pude? A alegria de voltar a falar com ela e a tristeza das suas palavras. Esta é a minha penitência: dez chicoteadas de arame farpado e um coração entregue ao covil dos leões.

*

ELE: Preciso desesperadamente de alguém para falar. Tantas coisas que me passam pela cabeça, tantos mundos perdidos, entrelaçados nos escombros do meu pensamento, sem âncora, sem porto, sem destino, sem ti. Fala comigo. Que a noite já vai longa. Fala, não te inibas desse grandioso dom que todos, ou quase todos, tivemos a sorte de receber. As palavras nunca estarão gastas. Nunca!

*

ELA: O fim de tarde no bairro estava calma. Duas ou três crianças brincavam no pátio. Eram o centro das atenções dos velhos que docemente os viam das suas varandas. Quem disse que eram felizes? Falo dos velhos, não das crianças. As crianças são sempre felizes.

Os velhos tentam desesperadamente imaginar-se com aquelas idades puras. E quantos anos já lá vão para que as recordações ressuscitem dos mortos. Muitos anos ficaram entre os sonhos e os fados. E depois do primeiro molar muitos se seguiram. E no entanto as crianças não param de brincar.


*

ELA: Morreu sem que lhe caísse o primeiro molar. A sua dentição era perfeita.

*

ELA: Como todos nós, o meu pai também já foi criança. Do álbum de família retirei uma fotografia da infância do meu pai. A preto e branco, como eram as fotografia na altura. Um pouco corroída nos cantos.

Era um rapaz muito bonito. Os seus olhos saltavam radiantes de uma esperança inocente, alheia a preconceitos que mais tarde se introduziriam na sua visão do mundo, o cabelo curto, a máquina dois, dava-lhe o ar da sua graça e a sua boca ligeiramente subida no canto desmascaravam a sua traquinice. A boca de dentes perfeitos que me beijava com amor e que hoje é apenas uma recordação.

*

ELE: O meu hálito está fora do prazo. Logo hoje que o pai d’Ela morreu. Logo hoje que preciso de falar. E nada me tira da boca o sabor a ferro e a sensação viscosa de um dente arrancado. Se tudo fosse tão fácil como aguentar este sabor a vida estava feita e todos teríamos vinte na cadeira. Uma vida é tão passageira como este sabor e é por isso que se torna irresistível saboreá-lo e voltar a saborear. Não queremos perder uma pitada do seu gosto sabendo que por vezes nos fartamos e desejamos nunca o sentir outra vez.

Acção passada quinta-feira dia 16 de Novembro de 2000
Quando Rodrigo só queria desabafar

Combinaram encontrar-se no final da tarde num café que desse jeito a ambos. Decidiram-se pelo Espanhol aproveitando a sua explanada aquecida e a vista para o rio. Às sete e meia em ponto encontravam-se sentados cada um com um capuccino entre as mãos.

- Mas o que é que se passa filho? Esse silêncio...
- Está tudo uma grande confusão. São tantas as coisas que tenho para fazer, que tenho para pensar e não consigo dar vazão nem a metade. E já sabes que é o André. Não consigo esquecê-lo. Não estamos juntos nem eu consigo andar com a vida para a frente.
- Não te vais abaixo agora pois não? És novo e ainda vais passar por muitas coisas.
- Eu sei mãe, mas não é simples. Quando se ama alguém não é fácil esquecer, muito menos quando sabemos que a outra pessoa também nos ama. A minha vida não termina aqui mas neste momento parece que sim, parece que não há esperança para o futuro. A sua ausência deixa-me de rastos apesar de por vezes sentir que estou melhor assim, que ainda tenho muito para viver e que ninguém é insubstituível, mas o sentimento é de vazio.
- Mas quando não dá, não dá.
- Eu não estava a ser muito feliz, mas agora estou miserável. Acho que nos últimos tempos já estávamos demasiado habituados um ao outro. Para além do amor éramos grandes amigos, grandes amigos que não se queriam perder. Eu ainda o sinto comigo. Eu sei que não andávamos bem, que eu rebentava por tudo e por nada, já nada me satisfazia, já nada me dava prazer. E se por um lado me sinto mais leve nos ombros por outro lado carrego comigo a saudade de tudo o que vivemos juntos, o pesar de não poder voltar a olhar para ele.
- Mas tens de ter forças para te segurar e eu estou aqui. Vais ver que tudo vai correr bem. E eu não te deixo sentires-te sozinho.
- Isso é muito bonito e eu aprecio, mas a minha vida não é só ser teu filho. E não digo isto por mal. O que mais me irrita é sentir olham para mim como o grande cabrão, talvez porque seja mais fácil, mas as coisas porque passámos e tudo aquilo que eu senti cá dentro, a tentar ser o melhor amante, o melhor companheiro, o melhor amigo...
- Mas tu não és uma má pessoa.
- Mas sou o cabrão!
- Ai, Rodrigo, não digas essas coisas.
- É verdade mãe. No final da história é essa a conclusão. E não me sinto com forças para voltar a amar, estou cheio de feridas emocionais e tenho a cabeça toda trocada, porque tudo aquilo que eu tento fazer bem acabo sempre por fazer mal. Eu não presto.
- Não te quero ouvir falar assim. Eu não dei à luz um derrotado, dei à luz um guerreiro e tu sempre o foste. Quero-te de cabeça erguida. Se as coisas não deram certo não deram, talvez ele não estivesse numa altura da vida propícia a mudanças, talvez simplesmente não quisesse mudar em nada e tu provavelmente não estás numa altura da tua vida para demasiada estabilidade. Tu ainda és jovem, tens muito para aprender e não sabes o que te reserva o dia de amanhã. Por isso não digas disparates.
- Eu só queria ser feliz. Mas já dizia a bíblia, o preço da traição são trinta moedas de prata e bem sabemos que essa história acabou em suicídio.

A mão de Lúcia voo direito à cara de Rodrigo. Depois da dura bofetada fez-se um grande silêncio à mesa e Rodrigo não conseguia olhar para a mãe. Lúcia tirou um cigarro do maço e acendeu-o. Estendeu-o ao filho.

- Fuma, vai fazer-te bem.
Acção passada Domingo dia 5 de Outubro de 1997
Quando Rodrigo tem a visita inesperada de André (Parte II)

- O que é que te deu para vires cá ter a estas horas? Sabes que sou péssimo com desculpas e não gosto nada de mentir aos meus pais.
- Entra no carro quero levar-te a um lugar.
- E não podia ser amanhã?
- Entra no carro e cala-te.

Rodrigo entrou no carro e André começou a conduzir.

- Mas para onde é que vamos?
- Já vais ver. Mas não faças mais perguntas que eu não vou responder.

Andaram de carro durante uns bons minutos por caminhos e ruelas que Rodrigo não sabia existirem. Foi quando ficaram estacionados junto a um velho muro que em tempos tinha pertencido a uma fábrica.

- É aqui. Agora temos de sair do carro – apagou as luzes e desligou o motor e tudo ficou numa escuridão um pouco assustadora.
- Mas está um escuro horrível. Afinal o que estamos aqui a fazer no meio do nada a meio da noite? Tens a certeza que é seguro?
- Tenho. E para o escuro tenho aqui esta lanterna que te vou dar.

Saíram do carro e André pediu a Rodrigo que acendesse a lanterna e apontasse para a parede e encontrasse uma linha e que depois a seguisse. Rodrigo muito desajeitado e um pouco nervoso acendeu a lanterna e passado alguns segundos a apontar para a parede encontrou a linha. Começou a segui-la e não via mais nada para além de uma linha, até que começaram a aparecer palavras:

“Há coisas que nem sempre conseguimos dizer verbalmente e por isso resolvi escrever-te esta mensagem. Talvez tudo isto seja desapropriado mas tive de tentar. Já não aguento mais estar junto de ti e não te ter, és a pessoa mais bela que conheci e estar longe de ti é contar os minutos para voltar a ver-te. Quero-te!”

- Eu também te quero.

Rodrigo atirou-se aos braços de André deixando a lanterna cair no chão. E com um feixe de luz apontado para o céu a marcar o local onde se celebrava o amor beijaram-se desejando cada momento, cada segundo, sentindo aquilo que há muito estavam para sentir. Os corpos tremiam, os corpos vibravam, como se fosse a primeira vez, onde tudo era desconhecido, estranho, confortante, bom.

PAIXÃO

"Apago todas as mensagens. Menos as tuas. Guardo a tua voz em pequenas doses e, dia sim dia não, ouço-as todas de seguida. Sinto-me demasiado incapaz para falar contigo para o que quer que seja. Não sei onde estás. Não quero saber. Tenho medo de saber mais do que sei. Uma dor de cada vez basta"

Pedro Paixão in Saudades de Nova Iorque
Acção passada Domingo dia 5 de Outubro de 1997
Quando Rodrigo tem a visita inesperada de André (Parte I)

Rodrigo já só pensava em André e há mais de seis meses que andava de coração apertado sem saber o que fazer. Na sua cabeça permanecia sempre a dúvida, pedir André em namoro e possivelmente um dia se tudo corresse mal perder um grande amigo, ou ficar com um grande amigo e permanecer em estado de duvida constante a pensar no que poderia ter vivido? E se a paixão não fosse mais do que um engano? A cabeça de Rodrigo estava a pontos de explodir de tanto amar. André era uma pessoa extremamente simples, não era bonito mas tinha o seu encanto e sempre que Rodrigo estava com ele o mundo à volta desaparecia e quando estava sozinho imaginava sempre a hora de voltar a estar com ele.

André já só pensava em Rodrigo e há mais de seis meses que andava de coração apertado sem saber o que fazer. E se Rodrigo não gostasse dele? E se para Rodrigo ele fosse só mais um? Iria arriscar numa coisa para depois ser humilhado. André tinha consciência de que não era a pessoa mais bonita do mundo, contudo, essa consciência não ultrapassava os complexos todos que tinha em relação a si e ao seu corpo. Com vinte e seis anos ainda não tinha encaixado bem a ideia de estar apaixonado por um rapaz de dezoito, mas quando estava com Rodrigo o mundo à volta ficava mais luminoso, mais bonito, como se tudo ganhasse um novo encanto.

Rodrigo estava no quarto quando recebeu uma mensagem no telemóvel: «Estou aqui em baixo e preciso de falar contigo» O coração de Rodrigo disparou. O que fazia ele ali? Que explicação é que ia dar aos seus pais para sair de casa àquelas horas a uma terça-feira. Olhou para todos os lados mas não sabia muito bem o que fazer nem o que pensar. Levantou-se e agarrou na mala, olhou para os pés e viu que estava descalço «Calçar-me», pensou. Voltou a poisar a mala e foi buscar os sapatos. Sentou-se na cama para se calçar e respirou fundo, atravessar os pais não ia ser tarefa fácil e ele estava cada vez mais nervoso, afinal o que dera a André para aparecer assim às onze da noite!

Passou pela sala e os pais estavam a ver televisão.

- Pai, mãe, vou à rua, já volto.
- A uma hora destas filho? Não te esqueças que amanhã é dia de aulas! – disse a mãe.
- O que é que vais fazer à rua? Hoje é Domingo – indagou o pai em tom desconfiado.
- É que a Joana ligou-me e está a precisar de falar, parece que aconteceu alguma coisa de grave na família. Ela não conseguiu explicar muito bem porque estava demasiado nervosa. Eu vou tentar não demorar.
- Vai lá, mas tem cuidado e vê lá a que horas é que chegas. E manda cumprimentos nossos à Joana e à família e vamos esperar que não seja nada de grave – disse a mãe.

Mais tarde teria de arranjar uma história para a Joana mas isso não importava nada quando tinha André à sua espera à porta de casa. Ao descer as escadas do prédio escreveu uma mensagem no telemóvel: «Para todos os efeitos estou em tua casa e desculpa lá estar aí mais vezes no imaginário do que na realidade»

AMOR

“Procuro a beleza do amor. A possibilidade de amar alguém. Sentir a necessidade de depender de alguém por amor. Ser capaz de fazer loucuras em nome de alguém que eu ame. Quero que alguém me ensine a fazer amor. Que me ame. Construir uma paixão. Amar. Desfrutar. Apaixonar-me. Viver a vida tal como ela não é. Encantar o mar. Soltar a voz ao ser que eu amo. Amar e ser feliz. Ser muito feliz. Adoro a felicidade. O amor vem por acréscimo. Crescer no amor. Crescer na paixão. Amar e ser amado. Muito amado e cantar. Cantar e bailar perdidamente. Encantar alguém. Fascinar esse alguém. Desfrutar da sua voz. Do seu calor. Do seu amor. Quero um destino assim. Um destino cheio de amor e felicidade. E queria que todos soubessem que fui feliz. O meu testamento seria a felicidade que vivi. Quero viver aventuras. Muitas aventuras. Grandes aventuras com o meu amor. E este amor que não acabe. Que dure por muitos anos. Que dure para sempre. E que não seja só uma ilusão. Quero morrer feliz e ao lado de alguém que eu possa amar livremente e sem pudor. Sem a repreensão de amar. Quero que todos saibam quem amo. Que todos saibam que sei amar…”
Janeiro de 2002

"O amor. Que é feito dele? Quem o tem? O que é? O que não é? Quem sou eu para desistir de amar alguém? E o amor começa a ser uma palavra enjoativa, carcomida pelo tempo, desviada de todo um propósito. Geneticamente mudada, os seus componentes tornaram-se mutantes. E quem deseja viver um passado glorioso só o encontrará nos livros dos pobres ratos de biblioteca. E assim se evapora mais um final glorioso. Devíamos dar nome ao amor dos nossos antepassados. A palavra amor significa, hoje, aquilo que não significava ontem. E a destruição da nossa língua é uma coisa permanente. Seria de bom-tom mudar então o passado. E amor seria delinquência. E amor foi delinquência.”
Agosto de 2005

ARRUMAR

Às vezes as casa precisam de arrumação e não tenho feito outra coisa para além de arrastar móveis de um lado para o outro. Tudo parece errado, fora do sítio, tudo parece despropositado. Mas aos poucos vou mudando aqui e ali e tento que tudo pareça mais normal aos olhos. Mais habitável, mais suportável. E agora esta notícia que não sei ser verdade... contudo agoniante.



Outras coisas também tiveram as suas mudanças. O meu blog "Coisas que vou vendo" mudou de morada. Agora está em http://diariodeumdesignerdemodaconfuso.blogspot.com

Com o curso terminado, precisava de um espaço para me apresentar enquanto designer e pareceu-me apropriado as mudanças. Tudo está a mudar, mas mais rápido do que eu pensava...

Hoje deixo um certo rasto de tristeza e nostalgia e ao som de Skin vou levando uns estalos na cara.


PARTIR

Blindado nos olhos contemplava a vida sem saber que o fazia
Foi puro gesto delicado em sombra esquecida
Amalgama de prosas poéticas e nada em tudo via
E estava desperto, atenção desatenta... sem intenção se despia
E assim ficava, negra escura alma em corpo dorido
O encontro das lembranças do que seu e só seu
Era o despertar da acidez por caminhos, labirintos,
Preciosas estradas de pedra doída
Escabrosa, mal cuidada, o presente rescaldo da harmonia
Quente, como um braseiro apagado, brilhante, consumidor,
O teu corpo no meu, o meu no teu, o nosso
Frio, como a noite que madruga sem se tapar,
O teu corpo ali, o meu corpo aqui
E contemplo sem o saber
Que a saudade é a pior punição dos velhos tempos
Da vigilante memória em mar dissipada
Do agregar de contendas em sonos abaladas
Da cruel eventualidade de dizer adeus ao próprio adeus
Partem os marujos
Partem as barcas
Partem as almas
Partimos nós

CIAO, ROBERTO

Amor mio – has I always used to call you every time we start a conversation – I will miss you badly but that’s the way life goes. You know it, I know it and they know it. That’s the life we choose to live. Jumping here and there, knowing new people every time we decide to go. But some people, although they are not with us physically, they stay with us in our minds, in our thoughts. You know that, we talked about it many times.

My crazy boys, always challenging yourself, always walking the line, but inside a very special one for those who try to really know you. You are one of a kind, my friend. It was very sad to watch you leave this morning, and for you I tried not to cry, but Marina blow it when she started crying (a special thank you to the guy who invented the sunglasses so I could cover my face).

We will miss you – “we accept you, you’re one of us”.

PEARL'S A SINGER + É DE TI QUE EU GOSTO

Há certos momentos da nossa vida em que paramos para pensar em tudo o que se passou. No que foi a nossa vida e no que será. E às vezes percebemos coisas boas, outras menos boas, ou mesmo não percebemos nada.

"Her job is entertaining folks, singing songs and telling jokes"

Hoje perdi um pouco da minha tarde a reler alguns dos meus scrapbooks. É engraçado ler esses textos com alguns anos de distância. Recordar as imagens e os textos que me chamavam a atenção. Que de algum modo me faziam pensar e que agora me fizeram repensar.

PEARL'S A SINGER
"Pearl's a singer, she stands up,
When she plays the piano in a night club
Pearl's a singer, she sings songs
For the lost and the lonely
Her job is entertaining folks,
Singing songs and telling jokes
In a nightclub

Pearl's a singer, and they say,
That she once was a winner in a contest
Pearl's a singer, and they say,
That she once cut a record
They played it for a week or so,
On the local radio
It never made it

She wanted to be Betty Grable
But now she sits there at that beer-stained table
Dreaming of the things she never got to do
All those dreams that never came true

Pearl's a singer, she stands up,
When she plays the piano in a night club
Pearl's a singer, she sings songs
For the lost and the lonely
Her job is entertaining folks,
Singing songs and telling jokes
In a nightclub

Pearl's a singer, she stands up
When she plays the piano in a night club
Pearl's a singer, she sings songs
For the lost and the lonely
Her job's entertaining folks
Singing songs, telling jokes
In a nightclub"

É DE TI QUE EU GOSTO
"Quando estou fora de mim,
é de ti que eu gosto.
Quando estou fora de ti,
sinto falta de mim.
Quando estou fora de mim,
É para ti que eu volto.
Quando me canso por fim,
é em ti que eu paro.
Quando choro sem fim,
é por ti que eu paro.
Sinto falta de nós
quando me deixas a sós...
...é de ti que eu gosto"

Andreia Moreira
Acção passada Domingo dia 1 de Outubro de 2006
Quando António desperta com uma boa sensação

António acordou com um conforto entre as pernas. Não sabia dizer que horas eram, mais sabia que ainda faltava muito para amanhecer. O sentimento de conforto deixou-o a dormitar um pouco mais, entre abrir e fechar de olhos, na doce sensação que acompanhava entre pequenos momentos sonhados e a realidade, entre acordares e adormeceres de prazer. A boca de Filipe entre as suas pernas estava a deixá-lo erecto, ele conseguia sentir cada centímetro dos seus lábios carnudos. António queria dizer-lhe que o amava, que ele o conhecia como mais ninguém, que ele o envolvia em si e para si, mas nenhum som saiu da sua boca. Ainda não o tinha visto, Filipe estava tapado pelos lençóis, só a sua volumetria se acercava dos seus olhos na penumbra da janela entreaberta. Fechou os olhos mais uma vez, sabia que o ia ver em breve e deixou-se no embalo da boca de Filipe, das suas mãos ásperas a percorrerem-lhe as pernas, do desejo que crescia em si.

Quando abriu os olhos estava de barriga para baixo. A mão de Filipe segurava a sua cabeça, as pernas sobre as dele e o pénis erecto junto ao seu ânus. Ainda não tinha visto o rosto de Filipe mas sabia que era ele pela forma como o corpo se mexia em cima do seu, pela textura dos lábios que o beijavam, pelo toque das suas mãos. Foi penetrado violentamente de uma só vez e quando ia a soltar um grito Filipe lançou a sua mão a tempo de lhe tapar a boca. António mordeu-lhe os dedos e sabiam a esperma, ao esperma de Filipe. António pressentiu que Filipe o queria magoar, de cada vez que entrava imprimia uma força desmedida, pensou, «Vieste-te antes e fizeste-me saber disso. Querias que eu soubesse que fui a tua segunda escolha. O que te fiz eu? Porque é que me queres magoar?»

Com os corpos colados um no outro Filipe começou a lamber-lhe o pescoço misturando a dor com o prazer, e pela segunda vez veio-se sem se preocupar com António, virou-se para o outro lado e adormeceu. António ficou de barriga para baixo com uma volta no estômago, não sabia se queria chorar, apenas sabia que alguma coisa estava mal e que era preciso resolver. Mas o silencio pareceu-lhe o melhor para aquela madrugada.

Acção passada terça-feira dia 15 de Maio de 2012
Quando Rodrigo é confrontado com a verdade de António

Há um mês que o silêncio se abatera sobre o apartamento, deixou de ser tocada música, de se ligar a televisão, os jantares eram silenciosos e a melancolia tinha tomado conta do espírito. Nunca mais se ouvira falar de Filipe, onde estava, se estava bem, se planeava voltar. Os corações estavam magoados e as esperanças com pouco ânimo. Rodrigo levantou a voz, estava a precisar de desabafar:

- Toda a vida sonhei com o que estávamos a viver. Não que fosse este o tipo de relação que eu desejasse, simplesmente desejava algo que parecesse certo. E tudo parecia certo. Eu era feliz, julgo que tu também e o Filipe parecia que tinha encontrado o seu lugar. Mas pelos vistos algo não estava a correr bem. Porque outra razão ele se iria embora? Eu sei que a vida dá muitas voltas, a minha deu muitas voltas.
- Se deu...
- Sempre fui uma pessoa de mente aberta, sempre aceitei todas as formas da expressão do amor. E com vocês tive de reciclar todos os meus conceitos. Aceitei viver uma vida da qual sempre havia dito que comigo nunca resultaria e tudo por um sonho, o sonho de ser feliz. E aqui estou eu com o maior dos vazios no peito. Depois de tudo pelo qual passámos para chegarmos aqui e ele desapareceu sem dizer porquê. Alguma coisa fiz de errado. Eu sei que a culpa foi minha...
- A culpa não foi tua Rodrigo. O Filipe é uma pessoa inconstante, está sempre à procura de alguma coisa, a cabeça dele não pára. Enquanto estivemos juntos fomos felizes mas algo fê-lo querer partir. Mas esse algo não foste tu. Antes de te conhecer a nossa relação estava por um fio. Não que não nos amássemos, nós amávamo-nos e muito. Mas só nós dois não estava a resultar. Nasceu uma barreira muito grande entre nós e já não sabíamos de que forma estarmos juntos, como habitar o mesmo espaço para viver o amor que sentíamos. E acredita que foram tempos muito pensativos, de decisões muito difíceis de gerir a nível sentimental. Como agir perante a ideia de terminar uma relação cheia de amor mas que não funciona?
- E foi então que eu entrei nessa história. Eu fui o salva vidas...
- De certo modo foste ou então eu e o Filipe perder-nos-íamos para sempre. E não foi uma decisão nada fácil. A ideia de partilhar tudo com mais uma pessoa, de saber que o amor dele teria de ser partilhado com outra pessoa e isso tudo deu-me a volta a cabeça. Eu só pensava em quão tudo era errado, uma ideia de loucos. E fiquei furioso com o Filipe, cheguei mesmo a odiá-lo, achei que ele já não me amava mais e que esta era a maneira que ele tinha encontrado de se envolver com outra pessoa e ir-me esquecendo aos poucos sem ser um corte demasiado radical. Eu sofri tanto como tu não imaginas. Estive mesmo a pontos de preferir perdê-lo para sempre do que compactuar com esta ideia louca de um relacionamento a três. Foi um processo complicado até tomar a decisão de deixar acontecer. E porque não? Ficávamos sempre mais felizes quando tu andavas por perto. E quando te ias embora ficava uma paz no ar. O Filipe tornava-se a pessoa mais carinhosas do mundo comigo e pode parecer estranho mas comecei a amar-te pelo simples facto de deixares o meu homem assim feliz. E aos poucos fui interiorizando a ideia de que se estivesse cá sempre que tudo ia dar certo. Foi então que, pela primeira vez, deparei-me com um novo sentimento. O de amar duas pessoas ao mesmo tempo. E foi tudo tão estranho e complexo que eu não sabia lidar muito bem, mas tu parecias dar conta do recado, como se fosses a verdadeira peça perdida do nosso puzzle. Contigo tudo batia certo.
- E agora que somos só os dois já nada bate certo?
- Eu amo-te Rodrigo. Mas a dor de não ter cá o Filipe é demasiado grande. Mas ainda bem que estás comigo, que estamos juntos.
- Eu também sinto muito a falta do Filipe, mas prometo que não te vou abandonar. Eu amo-te tanto.

Acção passada quinta-feira dia 14 de Agosto de 1977
Quando António descobre as roupas no armário

António estava sozinho em casa, a avó tinha ficado doente sem poder tomar conta de si. Estava por sua conta, entregue a uma tarde de verão quente, sem nada para fazer. Deambulou pela casa e tentou tomar atenção a todos os pormenores. Tentou encontrar os defeitos das portas e das janelas. Rastejou-se de costas pelo chão enquanto contava as manchas de humidade no tecto. Ainda perdeu algum tempo aos saltos em cima da cama dos pais mas quando viu o armário da mãe ficou pensativo. Lentamente desceu da cama e dirigiu-se às duas grandes portas forradas de espelhos e tentou olhar para si mesmo enquanto espreitava para o seu interior pela fresta. Abriu uma das portas e contemplou o guarda-roupa. Sempre se perguntou porque é que os homens não podiam usar saias ou saltos altos. Se a sua mãe ficava tão bonita porque não poderia ele ficar também. Tirou uma saia do cabide e vestiu-a. Mas a saia era grande demais e por isso transformou-a num vestido. Olhou-se as espelho e gostou do resultado. À sua nova indumentária juntou um chapéu preto de grandes abas e, da caixinha das jóias, retirou um colar com o qual se enfeitou. Algo de excitante se passava dentro dele. Parecia estar a descobrir um outro lado de si mesmo. Voltou a deambular pela casa mas agora vestido a preceito, imitando alguns gestos usados pela sua mãe.

Entrou na casa de banho e abriu a gaveta das maquilhagens. Começou pelos batons, escolheu o cor-de-rosa e começou a pintar os lábios. Tentou reproduzir os gestos da sua mãe mas isso só fez com que ficasse tudo esborratado. Depois, pegou no pincel e abriu algumas pequenas caixinhas com pós. Passou pela cara sem saber muito bem o que estava a fazer. Perdido naquelas experiências nem tinha dado pela sua avó ter entrado em casa.

- O que é que pensas que estás a fazer? Tu não és mulher! És um homem e os homens jogam à bola. O que é que eu faço contigo. Só me faltava agora um maricas. Despe já essas roupas e vai para o banho. Não fiques a olhar para mim. Agora! E se eu não contar ao teu pai tens tu muita sorte.

Com a vergonha estampada no rosto António despiu-se em frente à sua avó, entregou-lhe as roupas da mãe e entrou no banho.

- Quero isso tudo bem lavado. Ouviste?
- Avó Lurdes não conte ao pai. Não foi por mal.
- Vou pensar no que fazer. Mas agora limpa-me essa porcaria da cara.
Acção passada Sábado dia 26 de Dezembro de 1992
Quando António chega a casa...

Tentou ser o mais silencioso possível, que ninguém desse pela sua entrada, mas o candeeiro do quarto dos pais acendeu-se automaticamente.

- És tu filho?
- Sou eu pai.

Mas não queria falar muito. A sua cabeça andava aos trambolhões por dentro e naquele momento só conseguia pensar em ir lavar-se e tirar da sua pele toda a imundice que trazia consigo. A ideia de ser cheirado com o cheiro de outro homem repudiava-o. Tinha vergonha de si e das suas atitudes. Entrou na casa de banho e em poucos segundos estava nu e com a água a correr. Agarrou no sabonete e esfregou o seu corpo como se este estivesse encardido com a maior das sujidades. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, encostou-se à parede e deixou a água correr sobre si.

Havia nele uma dualidade de pensamentos. Se por um lado sentia-se sujo, por outro parecia que o mundo tinha ganho uma nova cor que o deixava feliz. Mas essa felicidade vivia rodeada de barreiras mentais e educacionais que António não conseguia ultrapassar. Olhou para o seu corpo e sentiu nojo, horas antes tinha-o entregue sem pudor a um desconhecido, tinha-se entregue aos prazeres da carne sem amor, tinha-se prostituído a custo zero e tudo para que pudesse sentir um pouco de contacto físico masculino. Ao longo dos anos havia-se sentido alienado do mundo, da sociedade, apartado das outras pessoas, brutalmente só em busca de um valor a que chamava liberdade. E ao percorrer esse caminho só encontrou desespero, vergonha e raiva.

A água continuava a correr e já há meia hora que tinha parado de se lavar. Simplesmente não conseguia sair dali, isso significaria encarar o mundo, viver com aquele peso na consciência, acordar de manhã e encarar os seus pais, sorrir-lhes e fingir que tudo estava bem mas por dentro só lhe apetecia gritar. Porque não podia ser simplesmente ele?

LIMPAR A CARA

Depois de muito tempo sem escrever no meu outro blog resolvi limpar-lhe a cara. Um ar fresco nunca fez mal a ninguém.

DIÁRIO DE UM DESIGNER DE MODA CONFUSO
Acção passada sábado dia 14 de Junho de 1997
Quando Rodrigo é um ombro amigo

João e Rodrigo conheceram-se na faculdade de letras no início do ano mas mal se falavam. Talvez o facto de ambos serem gays, e de João ainda estar mal resolvido consigo mesmo e com a sociedade, os tenha afastado. Iam falando aqui e ali mas sempre sem tocar na intimidade. Mas no sábado, dentro da discoteca, João precisou de um ombro e por sorte Rodrigo estava lá.

- Preciso de desabafar.
- Força.
- Acabei de trair o meu namorado em frente à melhor amiga dele e não sei o que fazer.
- Para quem tem medo que se diga gay ao seu lado e que é incapaz de abraçar o namorado em público estás muito saído da casca.
- Poupa-me os moralismos. Eu sabia que não devia ter vindo falar contigo.
- Desculpa. Não foi por mal. Mas é que mal me falas na faculdade, talvez por eu ser muito efeminado, o que não acho que seja... mas no entanto quando procuras alguém para falar eu já existo. Mas não te critico por isso. Não é fácil assumir. Mas vamos lá ao teu problema. O que tens de fazer agora é contar ao teu namorado e depois logo vês como ele reage. Presumo que vocês tenham uma relação fechada certo?
- É claro que temos uma relação fechada. Eu não gosto dessas coisas de relação aberta. Isso é só para gente promiscua.
- É? E no entanto acabaste de te envolver com outro. Qual é que foi a parte que eu não percebi.
- Eu amo o meu namorado e ele agora vai odiar-me.
- Mas eu não estou a dizer que não o amas. Simplesmente foste tentado por outra pessoa e, por azar, a melhor amiga dele estava a ver. Porque se não tivesse estavas mais descansado e ele nunca chegaria a saber e tu nunca tinhas vindo falar comigo.
- És mesmo parvo tu.
- Eu simplesmente gosto de olhar para as coisas como elas são. Pode até ser verdade que amas o teu namorado, mas tens vontades de experimentar outras coisas. E as duas coisas ficam complicadas de gerir e fazer essa escolha é uma coisa complicada.
- Não percebes que isto foi um erro.
- É claro que foi um erro – disse em tom de gozo – um erro que te estava a saber bem!... não fossem os olhos alheios.
- Estou fodido não percebes! Acabei de arruinar a minha vida e estou prestes a perder a pessoa que mais amo.
- Mas a escolha foi tua. Uma escolha que começou no momento em que decidiste ter uma relação fechada com o teu namorado e quebraste esse acordo metendo a tua língua dentro da boca do outro.

João, que não estava a gostar da conversa, virou costas e foi embora. Rodrigo ficou a pensar na hipocrisia das pessoas.
Acção passada sábado dia 18 de Março de 2000
Quando Filipe e António têm o primeiro encontro

Filipe estava desesperado na internet à procura de informações sobre António. Não se desculpava pela figura ridícula que tinha feito na noite da estreia quando toda a gente sabia mais do que ele sobre aquele bonzão que tinha sido a grande estrela da noite. Filipe perguntava-se em como nunca tinha ouvido falar de tal personagem e rogava pragas a Maria por nunca ter mencionado o facto de o tal António ser uma estampa andante. Filipe nem queria acreditar que tinha um encontro marcado.

Para desgosto de Maria, António era mais um dos homens inacessíveis da sua vida, mais um para a lista das conquistas perdidas. Mas Filipe sentiu-se a ganhar a lotaria. Só não podia voltar a fazer figura de parvo. Mas quando deu por si em frente ao computador, na sua pesquisa exaustiva, apercebeu-se do quão ridículo e infantil tudo aquilo era. Com vinte e sete anos mais parecia um miúdo de quinze. Parou então com aquela estupidez e foi tomar banho. Achou por bem que estava na altura de cuidar da sua higiene pessoal. Tirou a cera dos ouvidos, cortou as unhas dos pés, aparou os pelos púbicos e a zona do peito, besuntou-se em cremes para a pele, colocou o seu perfume do engate, ainda aparou algumas pontas espigadas do cabelo e durante meia hora tentou acertar com o penteado. Depois de bem limpo e cheiroso o filme seguinte era escolher a roupa. Passou horas em frente ao armário a vestir esta e aquela roupa mas nada parecia encaixar. Tentou mais de trinta conjuntos diferentes até achar que estava “menos mal”, foi quando olhou para o relógio e apercebeu-se que estava meia hora atrasado.

Correu para o carro e sempre de pé no acelerador tentou voar até ao bar onde tinham combinado, mas o transito começou a não jogar a seu favor. E sempre que tentava encontrar uma alternativa parecia que piorava as coisas. Com uma hora de atraso lá conseguiu chegar, mas quando estava quase à porta viu, através do vidro, António a levantar-se. Deu uma corrida até junto de si e pediu imensas desculpas pelo atraso.

- Eu sou a pessoa mais ridícula do planeta, mas pelo amor de Deus não te vás embora.
- Tu acreditas em Deus?
- Nem por isso.
Acção passada segunda-feira dia 18 de Setembro de 2000
Quando Rodrigo vê tudo por um fio

Parou o carro na rua com vista para o rio, não conseguia conduzir mais. O seu mundo estava de pernas para o ar. Procurou desesperadamente por um cigarro na mala mas antes que o encontrasse desatou a chorar. O seu peito ardia e a sua cabeça parecia que ia explodir. De tanto pensar em tudo já nada lhe fazia sentido. Tudo era espelho de uma insatisfação acumulada ao longo dos últimos anos e de passar a vida a desiludir os outros sem perceber o porquê. Há menos de uma semana que tinha terminado o seu namoro de três anos e essa ideia ainda não estava bem encaixada na sua cabeça... e agora isto! O seu melhor amigo tinha-lhe virado as costas pela coisa mais estúpida.

Rodrigo trabalhava em part-time em eventos para juntar algum dinheiro. E, no último de sábado, um dos seus trabalhos consistia em distribuir amostras de perfumes no jantar de gala a todas as mulheres convidadas especialmente pelo organizador. As instruções estavam dadas e Rodrigo depois de um dia inteiro a montar mesas, arrumar cadeiras e alinhas pratos, talheres e copos estava sem a mínima disposição para sequer sorrir. Foi então que na porta de entrada apareceu João que veio ter consigo.

- Estás bom Rodrigo? Não sabia que estavas a trabalhar aqui. Não podes arranja-me um perfume?
- Não te posso dar nenhum, desculpa. Isto é só para as mulheres especiais. Se não te importavas ias ali ter com o meu colega para ele te levar ao lugar.

Só se voltaram a ver na discoteca no domingo. João fez questão de ignorar Rodrigo à força toda. Rodrigo aproximava-se e João fingia que este não existia e assim foi a noite toda. Segunda-feira Rodrigo confrontou João.

- Porque é o que menino decidiu não falar comigo na discoteca?
- Ainda perguntas?
- Sim, não faço a mínima ideia!
- Por causa do perfume na gala. E eu estava a cagar-me para o perfume, mas foi a tua atitude. O que é que te custava dares-me um?
- Porque os perfumes estavam contados e eram só para as mulheres que foram convidadas especificamente pelo organizador. Eu não acredito que me deixaste de falar por causa disso!
- Mas já passou, já passou – e continuou a fazer o que estava a fazer sem olhar para Rodrigo.

Há três semanas que Rodrigo andava a dormir quatro horas por noite, o trabalho parecia nunca mais terminar, pelo meio uma relação acabada e para culminar esta parvoíce sem sentido. Rodrigo rebentou. Ele só queria ser feliz, ter o amor de alguém, os seus amigos e a sua família. Neste momento só restava a família com quem estava poucas vezes. Sentia-se completamente só, desamparado, jogado a um canto da sociedade. Tudo em que acreditava deixou de fazer sentido, perdeu a noção das palavras: confiança, amizade e amor. Era ele, para ele e por ele. À sua volta tudo parecia invisível, inexistente. Sentia o vazio.
Acção passada terça-feira dia 8 de Janeiro de 2002
Quando Filipe decide alugar o apartamento

- Se gostaste daquele apartamento porque é que não ligas para a senhoria? Talvez esteja aqui a oportunidade de recomeçar tudo que tu tanto procuravas. Vá lá... se pensares muito é que não decides nada.
- E quem é que me diz que amanhã não aparece um apartamento que eu goste mais?
- Mas tu adoraste aquele apartamento. É claro que vão existir sempre apartamentos melhores, mas isso é como em tudo na vida e de qualquer modo tu só o estas a alugar, não tens grandes obrigações. Tem-se sempre é de começar por algum lado. Hoje é este apartamento, amanhã logo se vê.
- E o que é que tu achaste do apartamento?
- Tu já sabes que eu gostei do apartamento, mas isso não interessa nada, és tu que vais viver nele. E se tu gostaste do apartamento liga para a senhoria antes que percas a tua vez. Há momentos na vida em que temos de arriscar.
- E se corre tudo errado?
- Se pensares assim vai mesmo correr. Tens de ser positivo, vais ver que vai dar tudo certo.
- Não sei António.
- Põe os teus medos de independência de lado e liga. Tu bem sabes que o teu pai vai sempre ajudar-te se ficares em apuros.
- Ok. Onde é que eu pus o número?
- Está aqui.

Passados quinze minutos estava tudo orquestrado. No dia seguinte iriam assinar o contrato e a chave da nova casa passaria para as suas mãos.

- Vês como não custou nada?
- Não custou agora, vais ver amanhã quando tiver de dar o dinheiro. Estou perdido! O que fui fazer.
- Não sejas dramático, já tens idade para ter juízo. Eu tinha vergonha se aos vinte e nove anos ainda estivesse em casa dos pais. Mas isso é só a minha opinião.
- Opinião essa para a qual eu estou-me nas tintas. O que importa agora é que vou ter a minha casinha, por isso bem podes começar a esquecer as saídas à noite, as idas ao cinema e jantares fora. É a isto que eu chamo independência!
Acção passada sexta-feira dia 14 de Julho de 2006
Quando Rodrigo se revela um “génio”

Estava uma noite de verão esplendorosa, a brisa quente que corria tinha a temperatura ideal, e na rua tudo parecia calmo. Dentro do apartamento, António e Rodrigo conversavam calorosamente sobre arte depois de alguns copos de vinho.

- Não é interessante o acto de recolher? - disse António. - A ideia de te surgir um objecto à frente, que outrora teve um significado mas que tu lhe vais dar outro. Assim, um objecto caído no esquecimento para alguém passa a ser a tua lembrança. E esse objecto pode adquirir o valor que tu lhe quiseres dar. Por exemplo, encontras uma banheira antiga na rua e esta pode tornar-se a tua mesa. Metes-lhe um tampo de vidro e até podes decorar com coisas no seu interior.
- Sim, tudo bem, mas porque é que coisas dessas têm de ir para um museu? E já somos todos artistas, é isso? O tempo que se perde com essas merdas para que mais tarde tudo isso se torne o novo lixo. A vida já está cheia demais para que se perca tempo a encontrar um significado para um conjunto de talheres amolgados e amontoados em cima de um barril de vidro com uma luva de médico lá dentro. Os artistas gostam muito de criar a arte do fogo de vista para tapar a poeira dos verdadeiros problemas.
- A arte não tem só de existir como intervenção social. Aliás, se há algo que tem mais significados e caminhos possíveis é a arte. É essa a sua beleza. Para que serviria a imaginação se não a pudéssemos usar?
- Mas porque é que não se admite que uma banheira com um tampo de vidro é uma banheira com um tampo de vidro! Não é por ter um significado ao lado que eu vou adorar mais ou menos. Eu até acho que na arte nada devia ter nome ou explicação. Se assim é eu também faço uma exposição só com banheiras com tampos de vidro e ao lado de cada uma punha “A vala: o véu cobre a fossa dos mortos por onde escorrem as verdades que nunca mais serão ouvidas” noutra podia simplesmente estar “Aquário vazio” noutra punha “Mesa”, depois metia uma luz dentro de uma delas e punha “Candeeiro”. Esta agora é boa “Por mais que existam banheiras há pessoas que a elas não podem aceder e mesmo que as vejam vai existir sempre uma barreira invisível entre o homem e a água”. Aposto que os intelectuais iriam adorar a minha exposição – e riu-se que nem um perdido do que estava a dizer – já estou a imaginá-los a dizer «na exposição “A banheira”, o artista Rodrigo Cantareno reflecte o seu crescimento intelectual sobre o pensamento do objecto. A sua genialidade confronta o espectador com uma visão do mundo apurada e incisiva» e o raio que os parta. Os artistas são todos uma cambada de pseudo-intelectuais. Tirando tu que és um querido.

Da cozinha apareceu Filipe:

- Tu estás demasiado bêbado para conduzir. Hoje dormes cá.
- Lá porque estou a dizer verdades já significa que estou bêbado?
- Eu estou-me a lixar para o que estás a dizer, não ouvi nem metade.
- Mas devias – disse António em tom de gozo – este rapaz é um génio artista!

aos meus brasileiros


Faço uma pausa na história que estou a contar porque me bateram as saudades de uma vida que vivi do outro lado do oceano. Foram momentos muito especiais ao lado de pessoas extraordinárias que me fizeram viver um pouco mais, ser um pouco mais, sorrir um pouco mais, sonhar um pouco mais. Saudades de abraçar, de estar, de viver, de dançar, de conversar, do café dos Montaditos, dos cineminhas no del paseo, no aldeota, nas aventuras de Topic, o PICI do outro lado da cidade, as noites no Fafi, as noites no pequeno music box, as idas ao sushi em qualquer parte da cidade, o dragão do mar, as viagens pela TAM, as idas ao consulado e à polícia, o sentimento de estar perdido e o sentimento de me encontrar, a beira mar, a rua Osvaldo Cruz, as aventuras no centro da cidade, no beco da poeira, e tantas outras histórias que ficam por relembrar. Mas relembro uma tarde à beira-mar a caminho da casa da Débora em que sonhámos alto, cantámos e naqueles instantes éramos duas crianças felizes a ver o por do sol (não fosse a gripe que apanhei no final do dia). Mesmo que a vida continue está tudo guardado cá dentro.

A todos vocês...
Débora Silva, Brenna Damasceno, André Castro, Rachel Cordeiro, Lara Ribeiro, Patrícia Matos, Vivian Melo, Juliana Moura, Raquel Crispim, Cris Rodrigues, Aliana Aires, Erika Carvalho, Bruna Ferreira, Sílvia Magalhães, Zé Pedro Marques, Álvaro Tachibana, Apoliana, Bruno (Frika), Camila Fustagno, Eliane Moreira, Elícia Diniz, Edvane Lima, Iara Braga, Luís & Marlene, Luís Carlos Alencar, Natasha Oliveira, Jos & Peter, Rafha Castro, Vera Lins, Walkiria, Victor, Nathalie, Faradiba, Lauro Kalil, Everton, Alynne Lopes, Aluisio Neto, Clarissa Machado, Herlane Rangel, Eveline Abdon, Andreia Guerra, Rafael Grangeiro.

Se eu fosse escrever as histórias com cada um deles então é que não saía daqui. Mas ficam as lembraças da Madonna, do Rent, dos alfinetes, dos Cabarets, das agulhas de tatuar, das francesinhas numa varanda brasileira, de um cão "voador", de uma loja de B.D., das viagens na leste-oeste, do Rio de Janeiro, das festas na praia, de "Encontros e Desencontros" (Lost in Translation), do cheiro de maconha às seis da manhã na primeira casa onde estive, da parada, das discussões sobre ankle boots, das sessões fotográficas, da glamorosa a caminho de águas belas, do "grande" comissário de bordo, dos cafezinhos, do Barlacobaco (que espero que esteja a ser um sucesso), dos desfiles de moda, dos sorrisos, do samba e do forró e uma memória especial da loira! E termino por aqui senão desato a chorar. Sinto falta de todos e de tudo.
Acção passada sábado dia 28 de Abril de 2012
Quando António tenta mais uma vez ligar para Filipe

- O número que marcou não está disponível, deixe uma mensagem após o sinal.
- Filipe é o António. Já se passou um mês e ainda não deste notícias. Podias ao menos mandar uma sms a dizer que não queres falar, ao menos saberia que estavas vivo. É claro que eu sei que estás vivo, mais não seja porque a tua madrasta ainda se preocupa contigo e, acho eu, que comigo. A sério Filipe, porque é que fizeste isto? O que é que te deu para saíres de casa sem aviso? As coisas estavam a correr tão bem, agora mais do que nunca. Foi um golpe muito baixo da tua parte. Eu amo-te tanto e fazes tanta falta. Nada é o mesmo sem ti. Este mês tem sido de uma solidão como tu não podes imaginar. Mesmo que tenha uma vida e um mundo à minha volta, nada faz sentido se tu não estás. Talvez seja o hábito – podes tu dizer – mas eu digo que é o amor. Tudo o que fizemos juntos, tudo o que construímos, onze anos e meio lado a lado e desapareces sem uma justificação. Tu não sabes o sofrimento pelo qual estou a passar. Dói levantar-me todos os dias e saber que não estás cá, que não vou poder beijar-te e sentir o teu cheiro. Fazes-me falta. Merda para tudo isto. Diz qualquer coisa, qualquer coisa que seja. Aparece cá em casa para conversar-mos, preciso ver-te, saber que estás bem. Não me faças isto, não desta maneira. Um beijo com muito amor.

Desligou o telemóvel e poisou-o na secretária. Deixou-se ficar deitado no sofá do escritório. A sua vida estava a deixar de fazer sentido. Com quarenta e um anos viu tudo ir abaixo, todos os sonhos, todas as histórias montadas na sua cabeça. Depois de ter conhecido Filipe a sua vida mudara radicalmente. Saltando de ideais em ideais nunca nada era certo com ele. E foi nesta mutação constante que aprendeu a ser feliz, mesmo que tendo de mudar em muito as suas visões do mundo e do amor. Filipe fê-lo acreditar que o amor estava para lá de quaisquer regras ou limites, que o amor era algo transcendente ao entendimento humano, que o ser humano se impunha a regras desnecessárias, que muitas das vezes sofria por opção. E agora Filipe tinha ido embora.

Passada uma hora o telemóvel de António apitou com um aviso de mensagem:
Desculpa mas não quero falar.
Acção passada sexta-feira dia 25 de Dezembro de 1992
Quando António aceita a proposta feita no bar

Subiram as escadas do prédio e o coração de António começou a acelerar. Perguntava-se se estaria a fazer a coisa certa, se estaria com a pessoa certa, se estaria na altura certa. Aos vinte e dois anos ainda tinha muitas dúvidas na sua cabeça, muitas perguntas sem resposta e no entanto ali estava ele, na casa de um desconhecido que metera conversa consigo horas antes no bar. A princípio levou aquilo como uma brincadeira só que nunca pensou que essa mesma chegasse tão longe.

António tinha dúvidas no que tocava à sua orientação sexual. Nos últimos tempos tinha vindo a sentir-se atraído por outros homens e não sabia como lidar com isso. Começou a dar por si sentado em bares gay, com uma bebida na frente, onde simplesmente apreciava o que o rodeava deixando-se sempre como espectador. Tentava perceber se o que ali se passava fazia algum sentido para si. Nascido no seio do catolicismo, nada daquilo era de bom tom.

Tinha saído, naquele dia em especial, para espairecer a cabeça. Os natais em família eram sempre stressantes com todas as discussões, que anualmente não diferiam muito, e todas as falsidades que o deixavam extremamente triste. O dia, que era suposto ser para valorizar o amor e a comunhão, virava num verdadeiro inferno.

A porta já estava aberta, mas António, perdido nos seus pensamentos, nem tinha dado por isso.

- Podes entrar, não tens de ficar à porta. Eu tenho de ir só à casa de banho, entra e fica à vontade. A cozinha é ali, tens bebidas no frigorífico, podes servir-te que eu volto já.

António olhou à sua volta e deparou-se com uma casa caótica, a precisar de uma boa limpeza. Por todo o lado podiam ver-se roupas espalhadas, livros amontoados, cinzeiros a abarrotar distribuídos por todos os cantos, a mesa ainda posta com os restos do jantar e algumas plantas meio mortas no parapeito da janela. Arregalou os olhos e pensou que o melhor era nem dirigir-se à cozinha.
Acção passada sexta-feira dia 13 de Junho de 1997
Quando Rodrigo tem um acidente de carro

Os raios de sol estavam a cortar a visão de Rodrigo e nem os óculos de sol o ajudaram quando, sem dar por isso, estava com a frente metida na traseira do outro carro.

- Merda! Merda! Merda! – acabara de bater com o carrinho novo em terceira mão que os pais lhe compraram depois de ter tirado a carta. Pôs os quatro piscas e saiu do carro. – Peço imensa desculpa mas fiquei bloqueado com o sol. Está aqui um caso feio.
- Você é mas é parvo. Dão carros a miúdos e depois é o que dá. Sabe, eu tenho de ir buscar a minha filha à escola e não tenho vida para isto. Há gente mesmo estúpida.
- Já lhe pedi desculpas. Não precisa de falar assim. Agora temos é de resolver a situação para cada um poder seguir a sua vida.
- E esperemos que seja por caminhos bem distantes. Vamos mas é escrever a carta amigável e sair daqui.
- A carta quê?
- Era só o que me faltava. Estes miúdos de hoje em dia não percebem nada de nada. Para vocês é tudo muito giro. Ai que giro ter carta, ai que giro ter carro, ai que giro o caralho.

Foi então que apareceu uma terceira pessoa – Precisas de ajuda? – dirigindo-se a Rodrigo. – As coisas podem resolver-se a bem e não é preciso ninguém insultar ninguém – disse para o homem de família.

Com a sua ajuda preciosa Rodrigo conseguiu resolver o problema e em menos de meia hora estava com o carro estacionado ali perto.

- Muito obrigado pela ajuda. Se não fosses tu acho que o homem ia descarregar em cima de mim toda a frustração de uma vida. Agora resta saber como vou contar aos meus pais.
- Queres ir tomar um café para acalmares os nervos?
- Deixa estar. Deves ter coisas para fazer.
- Está um café mesmo ali à frente. Tens a certeza que queres pegar já no carro?

Atravessaram a estrada e sentaram-se na esplanada do café. Estava um dia de sol maravilhoso.