Acção passada Sábado dia 26 de Dezembro de 1992
Quando António chega a casa...

Tentou ser o mais silencioso possível, que ninguém desse pela sua entrada, mas o candeeiro do quarto dos pais acendeu-se automaticamente.

- És tu filho?
- Sou eu pai.

Mas não queria falar muito. A sua cabeça andava aos trambolhões por dentro e naquele momento só conseguia pensar em ir lavar-se e tirar da sua pele toda a imundice que trazia consigo. A ideia de ser cheirado com o cheiro de outro homem repudiava-o. Tinha vergonha de si e das suas atitudes. Entrou na casa de banho e em poucos segundos estava nu e com a água a correr. Agarrou no sabonete e esfregou o seu corpo como se este estivesse encardido com a maior das sujidades. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto, encostou-se à parede e deixou a água correr sobre si.

Havia nele uma dualidade de pensamentos. Se por um lado sentia-se sujo, por outro parecia que o mundo tinha ganho uma nova cor que o deixava feliz. Mas essa felicidade vivia rodeada de barreiras mentais e educacionais que António não conseguia ultrapassar. Olhou para o seu corpo e sentiu nojo, horas antes tinha-o entregue sem pudor a um desconhecido, tinha-se entregue aos prazeres da carne sem amor, tinha-se prostituído a custo zero e tudo para que pudesse sentir um pouco de contacto físico masculino. Ao longo dos anos havia-se sentido alienado do mundo, da sociedade, apartado das outras pessoas, brutalmente só em busca de um valor a que chamava liberdade. E ao percorrer esse caminho só encontrou desespero, vergonha e raiva.

A água continuava a correr e já há meia hora que tinha parado de se lavar. Simplesmente não conseguia sair dali, isso significaria encarar o mundo, viver com aquele peso na consciência, acordar de manhã e encarar os seus pais, sorrir-lhes e fingir que tudo estava bem mas por dentro só lhe apetecia gritar. Porque não podia ser simplesmente ele?

LIMPAR A CARA

Depois de muito tempo sem escrever no meu outro blog resolvi limpar-lhe a cara. Um ar fresco nunca fez mal a ninguém.

DIÁRIO DE UM DESIGNER DE MODA CONFUSO
Acção passada sábado dia 14 de Junho de 1997
Quando Rodrigo é um ombro amigo

João e Rodrigo conheceram-se na faculdade de letras no início do ano mas mal se falavam. Talvez o facto de ambos serem gays, e de João ainda estar mal resolvido consigo mesmo e com a sociedade, os tenha afastado. Iam falando aqui e ali mas sempre sem tocar na intimidade. Mas no sábado, dentro da discoteca, João precisou de um ombro e por sorte Rodrigo estava lá.

- Preciso de desabafar.
- Força.
- Acabei de trair o meu namorado em frente à melhor amiga dele e não sei o que fazer.
- Para quem tem medo que se diga gay ao seu lado e que é incapaz de abraçar o namorado em público estás muito saído da casca.
- Poupa-me os moralismos. Eu sabia que não devia ter vindo falar contigo.
- Desculpa. Não foi por mal. Mas é que mal me falas na faculdade, talvez por eu ser muito efeminado, o que não acho que seja... mas no entanto quando procuras alguém para falar eu já existo. Mas não te critico por isso. Não é fácil assumir. Mas vamos lá ao teu problema. O que tens de fazer agora é contar ao teu namorado e depois logo vês como ele reage. Presumo que vocês tenham uma relação fechada certo?
- É claro que temos uma relação fechada. Eu não gosto dessas coisas de relação aberta. Isso é só para gente promiscua.
- É? E no entanto acabaste de te envolver com outro. Qual é que foi a parte que eu não percebi.
- Eu amo o meu namorado e ele agora vai odiar-me.
- Mas eu não estou a dizer que não o amas. Simplesmente foste tentado por outra pessoa e, por azar, a melhor amiga dele estava a ver. Porque se não tivesse estavas mais descansado e ele nunca chegaria a saber e tu nunca tinhas vindo falar comigo.
- És mesmo parvo tu.
- Eu simplesmente gosto de olhar para as coisas como elas são. Pode até ser verdade que amas o teu namorado, mas tens vontades de experimentar outras coisas. E as duas coisas ficam complicadas de gerir e fazer essa escolha é uma coisa complicada.
- Não percebes que isto foi um erro.
- É claro que foi um erro – disse em tom de gozo – um erro que te estava a saber bem!... não fossem os olhos alheios.
- Estou fodido não percebes! Acabei de arruinar a minha vida e estou prestes a perder a pessoa que mais amo.
- Mas a escolha foi tua. Uma escolha que começou no momento em que decidiste ter uma relação fechada com o teu namorado e quebraste esse acordo metendo a tua língua dentro da boca do outro.

João, que não estava a gostar da conversa, virou costas e foi embora. Rodrigo ficou a pensar na hipocrisia das pessoas.
Acção passada sábado dia 18 de Março de 2000
Quando Filipe e António têm o primeiro encontro

Filipe estava desesperado na internet à procura de informações sobre António. Não se desculpava pela figura ridícula que tinha feito na noite da estreia quando toda a gente sabia mais do que ele sobre aquele bonzão que tinha sido a grande estrela da noite. Filipe perguntava-se em como nunca tinha ouvido falar de tal personagem e rogava pragas a Maria por nunca ter mencionado o facto de o tal António ser uma estampa andante. Filipe nem queria acreditar que tinha um encontro marcado.

Para desgosto de Maria, António era mais um dos homens inacessíveis da sua vida, mais um para a lista das conquistas perdidas. Mas Filipe sentiu-se a ganhar a lotaria. Só não podia voltar a fazer figura de parvo. Mas quando deu por si em frente ao computador, na sua pesquisa exaustiva, apercebeu-se do quão ridículo e infantil tudo aquilo era. Com vinte e sete anos mais parecia um miúdo de quinze. Parou então com aquela estupidez e foi tomar banho. Achou por bem que estava na altura de cuidar da sua higiene pessoal. Tirou a cera dos ouvidos, cortou as unhas dos pés, aparou os pelos púbicos e a zona do peito, besuntou-se em cremes para a pele, colocou o seu perfume do engate, ainda aparou algumas pontas espigadas do cabelo e durante meia hora tentou acertar com o penteado. Depois de bem limpo e cheiroso o filme seguinte era escolher a roupa. Passou horas em frente ao armário a vestir esta e aquela roupa mas nada parecia encaixar. Tentou mais de trinta conjuntos diferentes até achar que estava “menos mal”, foi quando olhou para o relógio e apercebeu-se que estava meia hora atrasado.

Correu para o carro e sempre de pé no acelerador tentou voar até ao bar onde tinham combinado, mas o transito começou a não jogar a seu favor. E sempre que tentava encontrar uma alternativa parecia que piorava as coisas. Com uma hora de atraso lá conseguiu chegar, mas quando estava quase à porta viu, através do vidro, António a levantar-se. Deu uma corrida até junto de si e pediu imensas desculpas pelo atraso.

- Eu sou a pessoa mais ridícula do planeta, mas pelo amor de Deus não te vás embora.
- Tu acreditas em Deus?
- Nem por isso.
Acção passada segunda-feira dia 18 de Setembro de 2000
Quando Rodrigo vê tudo por um fio

Parou o carro na rua com vista para o rio, não conseguia conduzir mais. O seu mundo estava de pernas para o ar. Procurou desesperadamente por um cigarro na mala mas antes que o encontrasse desatou a chorar. O seu peito ardia e a sua cabeça parecia que ia explodir. De tanto pensar em tudo já nada lhe fazia sentido. Tudo era espelho de uma insatisfação acumulada ao longo dos últimos anos e de passar a vida a desiludir os outros sem perceber o porquê. Há menos de uma semana que tinha terminado o seu namoro de três anos e essa ideia ainda não estava bem encaixada na sua cabeça... e agora isto! O seu melhor amigo tinha-lhe virado as costas pela coisa mais estúpida.

Rodrigo trabalhava em part-time em eventos para juntar algum dinheiro. E, no último de sábado, um dos seus trabalhos consistia em distribuir amostras de perfumes no jantar de gala a todas as mulheres convidadas especialmente pelo organizador. As instruções estavam dadas e Rodrigo depois de um dia inteiro a montar mesas, arrumar cadeiras e alinhas pratos, talheres e copos estava sem a mínima disposição para sequer sorrir. Foi então que na porta de entrada apareceu João que veio ter consigo.

- Estás bom Rodrigo? Não sabia que estavas a trabalhar aqui. Não podes arranja-me um perfume?
- Não te posso dar nenhum, desculpa. Isto é só para as mulheres especiais. Se não te importavas ias ali ter com o meu colega para ele te levar ao lugar.

Só se voltaram a ver na discoteca no domingo. João fez questão de ignorar Rodrigo à força toda. Rodrigo aproximava-se e João fingia que este não existia e assim foi a noite toda. Segunda-feira Rodrigo confrontou João.

- Porque é o que menino decidiu não falar comigo na discoteca?
- Ainda perguntas?
- Sim, não faço a mínima ideia!
- Por causa do perfume na gala. E eu estava a cagar-me para o perfume, mas foi a tua atitude. O que é que te custava dares-me um?
- Porque os perfumes estavam contados e eram só para as mulheres que foram convidadas especificamente pelo organizador. Eu não acredito que me deixaste de falar por causa disso!
- Mas já passou, já passou – e continuou a fazer o que estava a fazer sem olhar para Rodrigo.

Há três semanas que Rodrigo andava a dormir quatro horas por noite, o trabalho parecia nunca mais terminar, pelo meio uma relação acabada e para culminar esta parvoíce sem sentido. Rodrigo rebentou. Ele só queria ser feliz, ter o amor de alguém, os seus amigos e a sua família. Neste momento só restava a família com quem estava poucas vezes. Sentia-se completamente só, desamparado, jogado a um canto da sociedade. Tudo em que acreditava deixou de fazer sentido, perdeu a noção das palavras: confiança, amizade e amor. Era ele, para ele e por ele. À sua volta tudo parecia invisível, inexistente. Sentia o vazio.
Acção passada terça-feira dia 8 de Janeiro de 2002
Quando Filipe decide alugar o apartamento

- Se gostaste daquele apartamento porque é que não ligas para a senhoria? Talvez esteja aqui a oportunidade de recomeçar tudo que tu tanto procuravas. Vá lá... se pensares muito é que não decides nada.
- E quem é que me diz que amanhã não aparece um apartamento que eu goste mais?
- Mas tu adoraste aquele apartamento. É claro que vão existir sempre apartamentos melhores, mas isso é como em tudo na vida e de qualquer modo tu só o estas a alugar, não tens grandes obrigações. Tem-se sempre é de começar por algum lado. Hoje é este apartamento, amanhã logo se vê.
- E o que é que tu achaste do apartamento?
- Tu já sabes que eu gostei do apartamento, mas isso não interessa nada, és tu que vais viver nele. E se tu gostaste do apartamento liga para a senhoria antes que percas a tua vez. Há momentos na vida em que temos de arriscar.
- E se corre tudo errado?
- Se pensares assim vai mesmo correr. Tens de ser positivo, vais ver que vai dar tudo certo.
- Não sei António.
- Põe os teus medos de independência de lado e liga. Tu bem sabes que o teu pai vai sempre ajudar-te se ficares em apuros.
- Ok. Onde é que eu pus o número?
- Está aqui.

Passados quinze minutos estava tudo orquestrado. No dia seguinte iriam assinar o contrato e a chave da nova casa passaria para as suas mãos.

- Vês como não custou nada?
- Não custou agora, vais ver amanhã quando tiver de dar o dinheiro. Estou perdido! O que fui fazer.
- Não sejas dramático, já tens idade para ter juízo. Eu tinha vergonha se aos vinte e nove anos ainda estivesse em casa dos pais. Mas isso é só a minha opinião.
- Opinião essa para a qual eu estou-me nas tintas. O que importa agora é que vou ter a minha casinha, por isso bem podes começar a esquecer as saídas à noite, as idas ao cinema e jantares fora. É a isto que eu chamo independência!
Acção passada sexta-feira dia 14 de Julho de 2006
Quando Rodrigo se revela um “génio”

Estava uma noite de verão esplendorosa, a brisa quente que corria tinha a temperatura ideal, e na rua tudo parecia calmo. Dentro do apartamento, António e Rodrigo conversavam calorosamente sobre arte depois de alguns copos de vinho.

- Não é interessante o acto de recolher? - disse António. - A ideia de te surgir um objecto à frente, que outrora teve um significado mas que tu lhe vais dar outro. Assim, um objecto caído no esquecimento para alguém passa a ser a tua lembrança. E esse objecto pode adquirir o valor que tu lhe quiseres dar. Por exemplo, encontras uma banheira antiga na rua e esta pode tornar-se a tua mesa. Metes-lhe um tampo de vidro e até podes decorar com coisas no seu interior.
- Sim, tudo bem, mas porque é que coisas dessas têm de ir para um museu? E já somos todos artistas, é isso? O tempo que se perde com essas merdas para que mais tarde tudo isso se torne o novo lixo. A vida já está cheia demais para que se perca tempo a encontrar um significado para um conjunto de talheres amolgados e amontoados em cima de um barril de vidro com uma luva de médico lá dentro. Os artistas gostam muito de criar a arte do fogo de vista para tapar a poeira dos verdadeiros problemas.
- A arte não tem só de existir como intervenção social. Aliás, se há algo que tem mais significados e caminhos possíveis é a arte. É essa a sua beleza. Para que serviria a imaginação se não a pudéssemos usar?
- Mas porque é que não se admite que uma banheira com um tampo de vidro é uma banheira com um tampo de vidro! Não é por ter um significado ao lado que eu vou adorar mais ou menos. Eu até acho que na arte nada devia ter nome ou explicação. Se assim é eu também faço uma exposição só com banheiras com tampos de vidro e ao lado de cada uma punha “A vala: o véu cobre a fossa dos mortos por onde escorrem as verdades que nunca mais serão ouvidas” noutra podia simplesmente estar “Aquário vazio” noutra punha “Mesa”, depois metia uma luz dentro de uma delas e punha “Candeeiro”. Esta agora é boa “Por mais que existam banheiras há pessoas que a elas não podem aceder e mesmo que as vejam vai existir sempre uma barreira invisível entre o homem e a água”. Aposto que os intelectuais iriam adorar a minha exposição – e riu-se que nem um perdido do que estava a dizer – já estou a imaginá-los a dizer «na exposição “A banheira”, o artista Rodrigo Cantareno reflecte o seu crescimento intelectual sobre o pensamento do objecto. A sua genialidade confronta o espectador com uma visão do mundo apurada e incisiva» e o raio que os parta. Os artistas são todos uma cambada de pseudo-intelectuais. Tirando tu que és um querido.

Da cozinha apareceu Filipe:

- Tu estás demasiado bêbado para conduzir. Hoje dormes cá.
- Lá porque estou a dizer verdades já significa que estou bêbado?
- Eu estou-me a lixar para o que estás a dizer, não ouvi nem metade.
- Mas devias – disse António em tom de gozo – este rapaz é um génio artista!