TODOS DIFERENTES, TODOS DIFERENTES (ESPERA! NÃO DEVERIA SER TODOS DIFERENTES, TODOS IGUAIS? JÁ NÃO SEI!)

Ao longo desta caminhada, tanto histórica como de reflexões, várias têm sido as personagens que cruzaram o seu caminho: o Sr. Ninguém, o falecido avô, o miúdo das estrelas, a cigana de Belém, Lourenço e, numa componente mais literária, o escritor Frederico Lourenço. Hoje, pretendo juntar uma nova personagem, muito importante na sua vida e que o tem acompanhado ao longo dos anos, habitando e partilhando consigo a casa e a vida: o seu amor.

Regressado de viagem, estava de volta nos seus braços, na sua companhia, na sua afeição, na sua vida... não era um amor qualquer, era um amor oblativo. A única barreira que, agora, os separava era a sua própria viagem. Aquela que iria realizar em breve sem data marcada de retorno. Era, de certo modo, um susto para ambos. As separações são sempre momentos críticos assim como as uniões. E num misto destes dois sentimentos relato aqui o dia em que os dois se voltaram a cruzar nos olhares. Assim o conto para que possa levantar questões que, invariavelmente, levarão a outras questões.

A problema primordial debate-se na questão do porquê das pessoas se aborreceram umas com as outras. E, usando-me das palavras da Regina Spektor, traduzindo-as de uma forma possível e, sem intenção disso, mas acabando por lhes destruir qualquer sentido no contexto onde se inserem, mais não seja pela não intenção de plantar-vos aqui a letra toda, é a partir das suas palavras que pretendo iniciar a minha exposição relativamente ao tema.

“As pessoas são apenas pessoas, não o deviam deixar nervoso. O mundo é perpétuo, ondulante em si, vem e vai, e se não sacudisses os teus plásticos as ruas não terias tanto plástico. E se o beijares, os dois estarão a ser práticos, pois as pessoas são apenas pessoas, as pessoas são apensas pessoas como tu.”

Então porque é que o seu amor não o abraçou convenientemente? Porque não o abraçou da forma que duas pessoas que se amam se abraçam? E porque é que isso o aborreceu? Por um lado, as pessoas eram apenas pessoa, não o deviam deixar nervoso! Mas avaliando correctamente a questão apercebeu-se que, por outro lado, as pessoas eram mais do que pessoas. E, extrapolando a questão para lá do seu amor, abraçando também a amizade, as pessoas passavam, com o tempo, a significar mais do que corpos físicos presentes ao seu lado. Não era só matéria palpável que o emocionava, mas toda a componente extra-física, invisível, emocional, energética, sensorial que o inundava de excelso prazer quando sentia desenvolver por outrem algo mais do que vê-las como simplesmente “pessoas”. Aqueles momentos graciosos em que se deixava envolver por simples palavras conjugadas, por simples gestos ingénuos, por simples sentimentos verdadeiros. Era essa a plenitude da amizade e do amor que tornavam as pessoas algo mais do que simples “pessoas”.

Voltando à história do seu amor, porque me parece justo que se explique aqui o que aconteceu às duas personagens antes que exponha as retóricas questões, ao chegarem a casa depois de uma viagem de carro, ao confrontarem-se sobre os acontecimentos ocorridos no tempo que passaram afastados, embateram contra questões divergentes, as quais já imaginadas pelo seu amor (resultando num frouxo abraço), levaram a algumas horas de debate aceso noite a dentro. E, pondo em pratos limpos o que aconteceu (para que tudo fique esclarecido), a nossa personagem, na ausência do seu amor, foi a um bar de strip, por convite de amigos de ambos, onde assistiu ao espectáculo, participando de alguns momentos. Ora, contado isto, o fogo apoderou-se da casa, de divisões e mobílias coloridas, provocando um incêndio imediato que velozmente se alastrou.

E, de um momento para o outro, ele tinha feito algo que aborrecera o seu amor e o seu amor reagiu de uma forma que o aborrecera a ele... e porquê? O que tinha sido uma noite divertida uma semana atrás, era olhada naquele momento como uma sentença do pecado. Uma mutação de estados vistos à luz de diferentes olhares e perspectivas. E porque se conflituaram eles? Tentou buscar todas as respostas às questões que inundavam a sua cabeça. Mas como qualquer boa questão, as respostas traziam consigo mais perguntas. E, em qualquer possível conclusão, nada mais conseguia do que encontrar uma rasteira no final induzindo-o mais uma vez em dúvidas.

Uma boa resposta plausível poderia prender-se no que concerne ao “respeito” (ponho respeito com aspas na ausência da possibilidade de demarcar a palavra). E, largando assim uma frase solta: As pessoas não se respeitam umas às outras. Mas o problema que esta frase coloca é: O que é ter respeito? O que é respeitar? E como se mede o respeito. Por exemplo, todos nós sabemos que é falta de respeito entrar numa igreja aquando de umas belas férias e falar, no seu interior, como se de um café se tratasse. Mas no que consta a relações, como poderia ele adivinhar que o que fizera iria ser desrespeitoso para o outro? Se para si, assistir a um espectáculo de strip era uma coisa normal, sem maledicência, sem segundas intenções, sem pecado, porque haveria de ter pensado que isso iria magoar o outro? As pessoas são diferentes, pensam de maneiras diferentes e encaram a vida de formas diferentes. Onde encontrar o ponto para que as pessoas não se deixem nervosas umas às outras (quando falo de encontrar o ponto a minha mente viaja para a culinária onde por vezes é preciso encontrar o ponto para não estragar uma receita). Outra coisa que aqui surge é a nossa aprendizagem. Pois diferentes aprendizagens levam-nos a seguir diferentes caminhos e diferentes naturalidades de encarar as coisas. Por exemplo, na Alemanha é falta de respeito falar tudo ao mesmo tempo num jantar de vinte pessoas. Em Portugal, se nos juntarmos só cinco numa mesa para jantar, é certo que mais do que uma conversa se fará ao mesmo tempo sem que isso seja, necessariamente, uma falta de respeito. Chamam-se hábitos de uma cultura. Hábitos que podemos rejeitar, criar, aprender ou desaprender. Isto leva-nos, num âmbito mais universal, a tocar num ponto dúbio que é: Então cada um faz o que quer pois a sua cultura pode tê-lo ensinado assim. Não é isto que quero dizer. O que quero perguntar é se, ao embatermos com algo diferente da nossa cultura, teremos que reagir de forma tão agressiva e afastar qualquer hipótese de compreensão.

Voltando ao problema do respeito e do que é ter respeito, o que para ele estava correcto para o seu amor estava errado (acrescento o seu negativo dizendo que o que para o seu amor estava correcto para ele estava errado, isto para que não exista favorecimento a nenhuma das partes e para que não se pense existir um favoritismo do narrador pela personagem principal). Como concluir então a zanga entre os dois? É aqui que entra a componente do “ceder”. E quem se deve o gesto do ceder? Quem se prestaria a enveredar pela opinião que não é a sua. Quem iria ter a ousadia de entender o outro ponto de vista tendo em conta o erróneo que este o é na sua doutrina? Podíamos seguir para os dois caminhos e explorar as diferentes reacções na cedência de uma e outra parte, mas não é esse o meu objectivo. Pois antes que se divida ao meio tal história, é necessário colocar a questão da sobrevalorização que, implicitamente, está atribuída à pessoa que cede. É sempre um marco importante para um do casal quando o outro cede, atenta, compreende... Mas fará isso com que essa pessoa tenha mais valor do que a outra? Não seria mais justo irem desbravando juntos o caminho de uma relação sem o uso de patamares niveladores. Um conhecimento equitativo de ambos os lados. A imparcialidade a credos anteriores alargando o horizonte para um conhecimento mais absoluto. Então onde está o ponto que deve ser achado por duas pessoas? Onde estava o seu ponto?

Contudo, não deixava de colocar as questões: Porque é que se aborreciam as pessoas? Porque é que incomodavam tanto certos aspectos nelas? Porque é que as pessoas não podiam ser aquilo que queriam sem que isso incomodasse os outros? Serem para ensinarem e aprenderem a ser! Lembrou-se então da história caricata da T-shirt preta com uma caveira que o seu amor comprara e que tanto dava que falar aquando do seu uso. Por amor de deus, era uma T-shirt. Não iria matar ninguém. E para quê tanta conversa. Para quê aborrecimentos, para quê constrangimentos? Era uma T-shirt! E ele iria continuar a usá-la independentemente das opiniões forjadas em tom depreciativo dos seus amigos (pode parecer estranha esta intervenção sobre uma T-shirt na história. Mas referi-me a ela pelo simples facto de uma simples peça de roupa causar náuseas a certas pessoas quando estamos a falar de um bocado de tecido de algodão, tingido de preto, com umas tachas agarradas formando a cabeça de uma caveira. Como apêndice informativo relato a realidade presente londrina, onde a figura da caveira pegou moda e é visível por todo o lado em qualquer acessório de roupa nas mais variadas pessoas. Assim o digo para que se perceba que um texto fora do contexto é motivo para um pretexto. Se ele usasse a cuja dita em Londres seria apenas mais um.)

Só posso concluir que: As pessoas fazem tudo isto para se sentirem vivas.

WHY’S IT SO HARD por MADONNA

“Why's it so hard to love one another? Why's it so hard to love? What do I have to do to be accepted? What do I have to say? What do I have to do to be respected? How do I have to play? What do I have to look like to feel I'm equal? Where do I have to go? What club do I have to join to prove I'm worthy? Who do I have to know? I'm telling you brothers, sisters, why can't we learn to challenge the system without living in pain. Brothers, sisters, why can't we learn to accept that we're different before it's too late (first time only).

Why's it so damn hard (all other times). What do I have to learn to know what's right for me? What do I have to know? What am I going to do when I feel righteous? Where do I have to go? Who should get to say what I believe in? Who should have the right? What am I going to do with all this anger? Why do I have to fight? Bring your love, sing your love, wear your love, share your love. Bring your love, sing your love, wear your love, show your sister how…

Brothers, sisters, what do I have to say? Brothers, sisters, how do I have to play? Brothers, sisters, who should have the right? Brothers, sisters, why do I have to fight? Why's it so hard to love one another? Love your sister, love your brother… Why's it so hard to love one another? Why's it so hard to love?”

From: Girlie Show

E SE FREDERICO LOURENÇO NÃO TIVESSE SOBREVIVIDO? – COMENTÁRIO À ÁVIDA LEITURA DE “A MÁQUINA DO ARCANJO”, UM PROCESSO SEM RETORNO.

Foda-se!, pensou, desta vez tenho que usar um termo ordinário. De outro modo não pode ser. Foda-se! Tinha acabado de ler o último resquício do que lhe havia sobrado de Frederico Lourenço, “A Máquina do Arcanjo”. E nem um oitavo de dia foi preciso para que as páginas fossem devoradas com tamanho prazer. Mais uma vez o termo ordinário lhe ocorria mas absteve-se de qualquer desenvolvimento a esse nível. Um murro no estômago. E tinha-lhe sido servido mais um (livro), que degustara com sôfrega fome, não deixando de sentir todo o seu sabor, com tamanho cuidado e em tom fúnebre de velório. Pois nas últimas páginas arrastava sempre a leitura para que o fim não parecesse tão próximo. E quando terminou só conseguiu murmurar, foda-se! A batida tinha sido funda. Estaria pronto para regressar de novo ao mundo? A encarar da mesma forma tudo o que o rodeava? Tinha lido um coração, o seu coração, tocado por outras notas, desterrado em outros tempos, comummente vivido no mesmo espaço. E no qual ainda habitava, mesmo que por pouco tempo, até partir e deixar Algés, a Av. das Descobertas, o Restelo, Cascais, Lisboa... Se o tempo não fosse o que os separava e o espaço irreconhecível aos seus olhos, as memórias não diferenciavam assim tanto. Foda-se! As suas últimas palavras, em tempo as primeiras, deixaram-no perdido, no chão da sala vermelha do qual, furiosamente, arrancara o tapete preto roçado pelo tempo, para que apenas se conseguisse levantar e andar em direcção à cama, do quarto laranja, onde fechou os olhos e não adormeceu. Raios parta o amor e a sua expressão maquiavélica que damos uma vida inteira para a controlar sem nos apercebermos de que morremos ao tentar fazê-lo. E tudo deixa de ser uma questão de viver mas de sobreviver. A constante tentativa de sobrevoar por nós a epifania do século que a ciência vai explicando aos poucos por intermédio de nomes longos, estranhos e insignificantes ao comum dos mortais. E o passatempo torna-se um jogo, e o jogo torna-se viciante, e o vício torna-se doentio, e a doença torna-nos fracos, e a fraqueza não é mais que um passatempo que nos demos ao luxo de ter. E, se bem se lembrava, não existia nenhuma bem-aventurança que dissesse: Bem-aventurados os fracos, pois foram corrompidos pelo amor! E só restavam agora as lágrimas pois, Bem-aventurados os que choram, pois Deus os consolará.

“Felizmente sobrevivi”

SEM AS PALAVRAS

“[...] A outra coisa que me dou conta tem que ver com o que se passa lá fora: populares a festejarem de antemão a derrota da Mourama em África. Muda o vento e o jardim é invadido pelo cheiro a sardinhas assadas. Com um misto de pena e alívio, trancorporalizo-me de novo.”
Frederico Lourenço in A Formosa Pintura do Mundo

Leu as últimas frases do livro “A Formosa Pintura do Mundo” e desejou que este não acabasse. Não ali. Não naquele momento. A noite parecer-lhe-ia uma tão doce tristeza sem aquelas palavras. Mas ao seu lado já olhava para si “A Máquina do Arcanjo”, também de Frederico Lourenço, pronto a ser aberto e atacado. Existia salvação possível para uma noite tão quente. E logo os seus dedos tocaram a capa e abriram o livro para que novas palavras se prostrassem à sua frente.

Frederico Lourenço surgiu na sua vida em tom de conversa no café. E nada mais era, para si, do que um nome solto nos muitos nomes que lhe foram injectados nessa mesma noite. Mas quando esbarrou contra a capa azulada de “Pode um desejo imenso” soube que não iria parar. As palavras entraram em si como água e deslizaram para a sua alma como um néctar dos deuses. Uma lufada de ar fresco no panorama literário português. Pois a leitura era algo da qual não prescindia. E seguidamente devorou “O curso das estrelas” e “À beira do mundo”. As horas pareciam não ter calma para que pudesse apreciar com precisão mais um pouco daquelas sequências de letras plenamente amestradas em palavras e frases orgânicas, ritmadas, compulsivas, desejosas, snobs, envolventes, cortantes, simples, belas... e a noite tendia a acabar. Mas ele não deixou que isso acontecesse sem que lê-se “Amar não acaba”. E agora só lhe restava mais um... e quando esse acabasse quanto tempo mais iria esperar...

“Quando, no final da adolescência, a necessidade de passar da teoria à prática em questões sexuais começou a tornar-se premente, dei-me conta de que ser activo ao mesmo tempo nas esferas da música e do sexo causava um entrechoque com efeitos de anulação recíproca para ambas as coisas. Em termos de vivência prática, sexo e música eram, no meu caso, incompatíveis [...]”

Frederico Lourenço in A Máquina do Arcanjo

A LISTA

Se não conseguia olhar para o céu azul com a mesma inocência de criança, também não podia pedir a uma criança que fizesse uma dissertação sobre Camões. Perdeu-se na ideia da impossibilidade de voltar a sentir o passado como se do presente se tratasse. A essa função estavam destinadas as memórias. Positivas ou negativas elas haviam moldado o seu mundo, a sua cabeça, a sua vida.

Pensava nisto porque se ia embora. Pensava nisto porque iniciara a lista das coisas que levaria consigo. A lista que determinaria o que ia e o que ficava. E as memórias iriam consigo mas apenas como momentos fotografados na sua mente. Uma biblioteca que pegara fogo deixando apenas algumas histórias completas, outras em frases soltas e as restantes desaparecidas nas cinzas.

Era a distância que tornava as coisas importantes. Só o afastamento poderia tornar um momento histórico. Diz-se de alguns momentos: vai ficar para a história! Mas só quando criamos o intervalo necessário entre nós e esses acontecimentos é que eles se tornam, efectivamente, históricos. Perguntava-se o que iria ficar na sua mente com a distância. Do que se iria lembrar? Do que se iria recordar? Quais as histórias que iria contar quando chegasse ao novo mundo?

E a lista continuava a crescer.

- Isto fica... isto vai... Não me posso esquecer de comprar um bom dicionário de português para levar. E também quero ver se faço uma selecção de livros. Mas os livros são pesados. Vai ter mesmo de ser uma selecção rigorosa. É difícil. Isto definitivamente fica. Isto vai...

SÓ UM DIA. SÓ MAIS UM...

A casa estava de pantanas. Prometera a si mesmo que a ia arrumar. Só mais um dia. Só mais um... e a casa continuava caótica. Eram tintas espalhadas na sala em frente a um quadro por pintar. A louça lavada à espera de ser arrumada. A cama desfeita e os lençóis em revolução. Livros em todos os cantos. Coisas antigas aos montes.

Há quem diga que quando sonhamos com uma casa nada mais estamos a fazer que uma auto-análise de nós mesmos. Estaria a sua casa relacionada com o seu estado de espírito? Coisas soltas por arrumar. Sentimentos à espera de um lugar. E onde os arrumar? Onde? Só mais um dia. Só mais um... e a sua alma continuava caótica. Projectos por concluir. Pensamentos inacabados. Quadros por pintar. Livros por escrever. Conversas por ter. Amor por dar. Vida por viver. Só mais um dia. Só mais um...

O tempo estava a passar. E não tardaria muito para que partisse na sua viagem. O bilhete de avião já se encontrava na sua mesinha de cabeceira. Só de ida, sem data de regresso. E a casa continuava descomposta e a alma desordenada. Só um dia. Só mais um...

REALIDADE VIRTUAL

- Nós só vemos aquilo que queremos ver – dizia para si. Tinha de manter essa ideia presente. Concentrar-se na verdade de que a realidade era um mero espaço desconhecido em que se concentravam imagens pré-fabricadas pela sua mente. Estaria livre para pensar de outra forma? Estaria apto à desfragmentação desses objectos em prol de um vislumbre da sua transparente exactidão? E, afinal, em que consistia essa exactidão? Indagar pelo aglomerado de moléculas não lhe parecia o mais viável. Isso levaria a uma apreciação fria das coisas.

Mas onde estava então a verdadeira consistência das coisas, das pessoas, dos espaços se não na sua mente? E porque não deixar-se levar pelo que efectivamente queria ver? Mas sabia ser, para si, errada essa forma de encarar o mundo. Ele carecia ver mais para além dos seus olhos. Mais para além daquilo que se lhe postava à frente. O íntimo, o profundo, o privado, o âmago das coisas. Só assim se sentiria completo.

Perfurar as entranhas da vida. Realizar-se dos componentes que ligam as coisas. Mas sabia ser uma batalha injusta. Pois, efectivamente, só ele poderia chegar a conclusões. Sozinho teria de realizar essa formatação ao olhar, ao tacto, à audição, ao paladar e ao olfacto. Só ele. Mais ninguém.

TEMPO PARA TUDO - ECLESISTES 3:1-8

"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz."

A MORTE DE LOURENÇO

O dia lá fora estava pesado. Mais pesado do que os outros dias. Pesado. E o silêncio era a única coisa que queria ouvir. A chuva incomodava-lhe os pensamentos. Morrera. Estava morto. Haveria, porventura, salvação para o que morria? E para o que ficava? Pare ele que chorava a morte de Lourenço. Para ele que nunca mais o iria ver. Para ele que teria de continuar a viver. Viver e não morrer. Mais um dia. Mais um adeus. Durante quanto tempo mais iria suportar dizer adeus? Nada é eterno. Tudo é efémero. E isso deixava-o desconfortável. Quantos mais adeus iria dizer?

CARTAS TERMAIS

Aqui me encontro neste lugar inesperado. Não contava que esta viagem se cruzasse na minha vida. Não neste momento em que o tempo corre mais depressa que os relógios, em que cada minuto tem de ser aproveitado como se fosse o último. Não era bem por esta viagem que esperava. E, no entanto, aqui estou eu, afastado do meu mundo, da minha realidade, da tua realidade. Aqui rodeio-mo de árvores verdejantes e densas. O ribeiro corre silencioso. Por todo o lado vêem-se casinhas plantadas neste pequeno mundo rural que se rodeia à volta de uma fonte de água quente natural. Ontem à noite estive lá e o fumo evaporava-se no ar. É a natureza a trabalhar para nos proporcionar momentos calmos e relaxantes. É um lugar agradável, repleto de simplicidade e pessoas simples.

Mas, aqui, o tempo corre devagar. Deixo-me enraizar na terra, crio raízes neste ambiente florestal. Deixei-me a ouvir Diamanda Galás. A sua voz grunhiu-me na alma, um contraste que se adequa perfeitamente com o momento. Estou eu, ela e a natureza.
Aqui já se pôs noite e, no céu limpo, as estrelas brilham. Agora, só resta esperar pelo dia de amanhã e entender o que faço aqui, neste lugar inesperado.

Com amizade,
P.

Comecei a ler “Os Anões”, de Harold Pinter. Ainda não entendi os propósitos do autor ao escrever aquelas palavras. Mas tenho-me deleitado nas conversas que escreve. É como se tivesse acompanhado. Entro nas suas conversas como espectador passivo. Mas, não tarda muito, estou a terminá-lo, outros pormenores poderei dizer-te mais tarde.

Os dias aqui são mais compridos. Na cidade, provavelmente já teria passado uma semana. Aqui o tempo é nosso. Com ele fazemos o que queremos. É uma sensação de liberdade. Tenho-me feito acompanhar por algumas vozes. É outro dos meus estratagemas para me sentir acompanhado. Diamanda Galás, Regina Spektor e Amália foram, até agora a minha eleição. Entendo que me devas estar a achar estranho. O que faço eu num lugar de reflexão a tentar sentir-me acompanhado? Mas, as companhias que arranjo, ajudam-me a reflectir.

Tenho conversado imenso com a minha avó. Ainda esta tarde contou-me um pouco da sua história. É impressionante como o tempo passa e nunca chega para falar de tudo o que vai na nossa alma. Sinto-a triste com a vida. Em cada palavra que solta os seus olhos parecem querer chorar uma lágrima. Se ao menos o meu avô não tivesse partido sem avisar.

Com amizade,
P.

Acabei de ler “Os Anões”. Nada de novo. Conversas perdidas na linha do tempo; intemporais portanto. Mas não passam de conversas; conversas impossíveis. Nada mais tenho para te contar sobre o livro.
Receio que o dia de hoje tenha sido em vão. Não me prestei muito a pensamentos filosóficos. Andei. Isso sim. Andei pelos caminhos de areia junto ao ribeiro. Deixei-me a respirar o ar puro emanado das árvores e apreciei a natureza. Bela. Bela. Bela. Perfeita como nunca serei…

Com amizade,
P.

A vida dá muitas voltas. O destino é cruel, mas é o nosso mestre. Ele ensina-nos aquilo que precisamos compreender. Temos de aprender a escutá-lo. A ouvir a sua sapiência. Ele eleva-nos a um estádio superior. Hoje sinto-me mais conhecedor do que ontem. Sinto que o universo se revelou e abriu-me mais uma porta para o seu interior. Agora consigo vislumbrar mais estrelas. Agradeço-lhe por isso. Por acrescentar ao meu curso mais uma ou duas estrelas.

Com amizade,
P.

Estou quase de volta. Passo os meus últimos momentos por aqui. Tem-me feito bem respirar este ar puro e descansar nesta paz. Estou contente de ter vindo para aqui. Todas as experiências são sempre bem vindas. A novidade é sempre algo bem-vindo. Aperceber-me de mim mesmo tem-me feito bem. Passear sozinho pelos caminhos junto ao rio. Ouvir os sons da natureza. Confesso que o tempo foi muito. O vício da cidade é quase doentio. E o afastamento desta vai-me consumido o espírito. A falta de informação visual, de informação sonora, de informação! Estarei de volta não tarda nada. Assim espero.

Com amizade,
P.

O que fui lá fazer? Respirar! Sim, respirar para viver mais um pouco. Não é isso que todos queremos? Viver mais um pouco!

Com amizade,
P.

MEIO CORPO

- Isto faz parte da minha imaginação?
- Porque haveria de fazer parte da tua imaginação? – perguntou-lhe o miúdo das estrelas.
- E porque não haveria? Afinal, encontrei-te no outro mundo...
- Que é o mesmo que o teu.
- Sim, já me tinhas tentado convencer com essa ideia.
- E não te convenci?
- Em parte. Mas quem disse que eu não posso agarrar em ti e alterar os códigos da percepção?
- Os teus códigos queres tu dizer?
- Sim, os meus códigos. Neste mundo tu és o miúdo das estrelas. Mas fui eu que te imaginei assim, pois nesse dia estava a acender estrelas. E se tivesse estado a dar uma nova cor à lua? Não passarias a ser o miúdo da Lua?
- Mas a verdade é que estiveste a acender estrelas.
- E isso fez-me criar uma imagem de ti. Mas serás essa imagem?
- Para ti sim. Par outra pessoa serei outra coisa. Aquilo que ela imaginar. Mas isso não tem de ser pejorativo. Eu também tenho uma imagem de ti. Corresponderás efectivamente a ela? Provavelmente não. Ninguém é transparente o suficiente. Nem tu nem eu. E que importância tem? As relações entre as pessoas nascem do que elas oferecem umas às outras. Evoluem do conhecimento que se vai adquirindo sobre elas. E, muitas vezes, esse conhecimento poderá mudar a tua percepção. As pessoas mudam, a tua percepção delas também. Por exemplo: estamos os dois, aqui, sentados nestas rochas. Estamos a uma distancia de meio corpo. Para mim, isto é uma distancia aceitável e, para ti, pode ser intimidade a mais. Daqui a um mês, se voltarmos a estar juntos, sentados nestas rochas, o que representará esta distancia para nós? E daqui a um ano? Pergunto-te então: levar-te-á a algum lado não me veres como o miúdo das estrelas?

QUIROMANCIA

Levantou-se tarde, mal sabia ele que, naquele dia, iria ter uma experiência nunca antes vivida. Tinha combinado ir tomar um café aos Pastéis de Belém. Há algum tempo que não passava por aqueles lados. Parou o carro perto dos jardins. Ao atravessá-los foi interceptado por uma cigana.

- Rapaz. Não queres que te leia as mãos?

Nunca até então tinha tomado atenção àquelas senhoras que por ali andavam. Sempre que passava por elas acelerava o seu passo para não ser incomodado. Como tinha o hábito de chegar mais cedo aos encontros, resolveu experimentar. Depois de terem feito o acordo monetário, ela aproximou as suas mãos das dele e examinou-as com delicada atenção. Houve um período de tempo silencioso que o incomodou. Mas rapidamente a cigana começara a falar.

- És um rapaz bastante perceptivo, analisas criteriosamente e compreendes as coisas de uma forma mais universal. Procuras as raízes de tudo, não te deixas ficar pelo que é superficial. Tens uma natureza profunda e espiritualizada. Dedicas-te aos estudos da humanidade, da religião, da filosofia e da literatura. Vejo aqui que o teu senso de julgamento está bem desenvolvido. Aprecias a justiça e a verdade. Mas sabes que isso te assusta.
- Isso está tudo nas minhas mãos?
- Isto é só o começo. Perguntas-te como umas mãos tão feias podem dizer tanto?
- Eu não tenho as mãos feias.
- Se não roesses as unhas eram mais bonitas!
- Não estou a gostar.

A cigana riu-se. Tocou-lhe na cara, virando-a para ambos os lados...

- Não tenhas medo. És um rapaz bonito, mas os teus olhos estão cansados. Apesar do teu aspecto forte, escondes muitas fraquezas aos desatentos.
- Não me estava a ler as mãos?
- Que impaciência. Até parece que estás atrasado.
- Por acaso não estou.
- Eu sei que não estás. PERFECCIONISMO – gritou – ordem, qualidade. É assim que gostas de fazer as coisas. Tens uma alma solitária. Gostas de estar só e aprecias a tua própria companhia. Contudo, não consegues viver sem os outros. És narcisista e egocêntrico. Não te entregas a ninguém de mão beijada. Conquistas os outros pelo prazer de seduzir. Tens de alimentar o ego, infelizmente, não te preocupas com os sentimentos dos outros. E isso pode causar o afastamento de pessoas que te poderiam fazer muito feliz.
- Olhe lá, se era para me enxovalhar mais valia não dizer nada.
- Egocêntrico. Eu, eu, eu. Eu não estou aqui para te enxovalhar. Eu estou aqui para ler as tuas mãos. E tu não estás a prestar atenção. Tens de ter paciência. Tens uma boa alma e nunca te deves esquecer disso. Apesar de virares tudo para ti, sabes ser um bom amigo, um bom companheiro. Eu disse-te que tinhas de prestar mais atenção. Está atento! Abre os olhos! E agora vamos ver o que mais têm as tuas mãos para dizer. Aqui está uma coisa interessante. Ouve. Tens uma tendência nata para baseares os teus relacionamentos em diálogo e companheirismo. Mas não consegues parar por aí no amor. Quando amas precisar de culminar toda a sedução, todas as palavras, todos os sentimentos no carnal. E isso eu não precisava de ler as tuas mãos.
- Está a gozar comigo?
- Rapazinho tolo. Ouve aqueles que sabem do que falam. Tu és pedra dura!
- Sou carneiro.
- Como se eu já não soubesse. Mas continuando que eu não tenho a vida toda para ti. De ano para ano, vejo que te tens soltado mais, tens-te tornado mais jovial, espontâneo e liberal. Procuras por aventuras e novidades. Vais partir em breve.
- Como sabe?
- Ainda continuas com perguntas estúpidas?
- Tenho curiosidade!
- Eu sei. Passando à frente... Sempre te rodeaste de amizades mais velhas que tu, ou pelo menos, mais amadurecidas. Não te assustes se, na velhice, procurares aproximar-te dos mais novos. E só aí vais viver a verdadeira adolescência e juventude que agora vives de forma tão séria. Apesar de tudo ainda és muito emotivo. Deixas-te levar e esqueces-te da razão. E isto que te vou dizer não vem nas tuas mãos. Mas vais ter de começar a aprender a pedir desculpa.
- Mas se isso não vem nas mãos...
- É só uma conclusão que retiro do que leio. Mas isso já é contigo meu rapaz. Voltando ao teu lado emotivo. É comum empolgares-te facilmente com as coisas. Idealizas tudo e todos, desenvolves projectos, a maior parte que não vais realizar, deixas-te levar pelas coisas e sabes perfeitamente que isso te obriga a apanhares grandes decepções. Mas é assim que vives as coisas e de outro modo não o poderia ser. Porém, deixa que te diga, tu ainda não te definiste na vida, ainda não tens uma meta, apenas pontos de partida. E esses, sim, tens muitos. Apresentas uma boa memoria, uma excelente concentração, muito ligado às coisas físicas, concretas palpáveis e visuais. Mas apesar da tua natureza livre, decides-te, muitas vezes, por caminhos que te impõem limites para a tua expansão. Dessa forma, deixas de desenvolver, por vezes, a tua habilidade nata que reside nas artes. Mas como te disse, tu ainda não te definiste na vida. Não consegues deixar de amar. Toma cuidado. Por vezes temos de impor barreiras no amor. Há decisões que podem arruinar toda uma vida. Alguns acidentes subtraíram, ou subtraem alguma da tua alegria, mas isso foi, ou será, passageiro. Longa vida e boa viagem. Até outro dia meu rapaz.

E a cigana afastou-se por entre as árvores.

TODOS SOMOS POTENCIALMENTE OPTIMISTAS

Acordou, abriu os olhos e tudo estava silencioso. O conforto da ausência de ruídos era majestoso aos seus ouvidos. Era a paz mascarada de sossego. Respirou desse ar por instantes enquanto afagava o pelo ao gato branco. A meia luz que entrava pela janela refrescava-lhe os olhos ainda doridos de noites mal dormidas. Tomou o seu banho relaxado e deu-se à liberdade de andar nu pela casa. Sentia-se livre e o seu corpo dançava num bailado ao som de uma música que deixou a tocar.

Mais tarde, compôs-se e saiu porta fora. Depois da água, necessitava banhar o seu corpo em límpidos raios de sol. Na explanada do café tomou, sossegadamente, o seu refresco e lançou-se à leitura de uma revista, que tinha comprado numa papelaria juntamente com o maço de tabaco.

Acendeu um cigarro e ali ficou. Houve um artigo que o chamou mais à atenção do que os outros: “O poder do optimismo”. Achava-se uma pessoa optimista. Em alturas, optimista demais. E em grandes voos, por vezes, vinham grandes quedas. Mas isso não o assustava pois, associadas às grandes quedas, vinham grandes aprendizagens. No artigo, apercebeu-se que a filosofia do pessimismo ganhou forma no Renascimento, depois do Gótico e antes do Barroco. Teria a escuridão do gótico e a sua imponência diminuído as pessoas? As pessoas temem o desconhecido, o ausente, o imaginado.

“A noção de que um optimista é uma pessoa algo ingénua ou até pouco inteligente é baseada na influência dos filósofos europeus dos séculos XVI ao XIX. No entanto, pesquisas científicas feitas nos últimos dez anos têm demonstrado que as pessoas optimistas não são ingénuas, mas sim realistas, porque olham sempre para a questão no seu conjunto, acabando por dar mais peso ao lado positivo. Já os pessimistas não, focam-se logo no negativo. Outra coisa que também ficou demonstrada é que são mais persistentes. Um optimista esforça-se mais por resolver o problema do que o pessimista, porque tem mais confiança no seu poder e na sua força de vontade.” O artigo terminava com um texto muito interessante de João d’Alcaravela, “O optimismo é essencial e o pessimismo acidental. O primeiro é responsabilidade assumida e o segundo é abdicação. Mas uma pessoa nunca é totalmente só uma coisa, por isso, temos de ter a visão e a aspiração de que todos somos potencialmente optimistas. Trata-se de optimizar o que já temos”.

Quando acabou de ler o artigo, folheou mais algumas páginas, pagou o refresco e voltou para casa. Saboreou o caminho até ao último instante e, antes de entrar na porta do prédio, olhou para o céu e deixou mais alguns raios de sol penetrar na sua pele. Sorriu.

ÓDIO

O que ele mais odiava nas pessoas era a burrice. Disso estava certo. Podiam-lhe interromper o discurso, argumentando a existência de outras coisas (egoísmo, ganância, falsidade, má educação, mentira...), que ele mantinha a mesma opinião. Odiava pessoas burras e isso era um facto. É claro que as outras coisas também mereciam a sua atenção na avaliação, mas que as pessoas burras lhe faziam confusão... faziam! Ele dizia isto porque associadas à burrice vinham sempre outras características que o incomodavam.

Chegara também à conclusão que empregar a palavra odiar era forte demais. Odiar e amar eram conceitos demasiado extremistas para se dar ao luxo de lá chegar. “Que se lixe”, pensou, “se tiver de ser extremista ao ponto de dizer odiar, serei! Elas mexem-me com o sistema. Que posso eu fazer?”

Ele tinha consciência do abuso da palavra ódio. E sabia também que, muitas das vezes em que a empregara, não era o que realmente sentia. A palavra é sempre diferente do sentimento. É difícil sentir as palavras e mais difícil ainda é transformar os sentimentos em palavras. Sentir ódio era doloroso demais. Sentir ódio era sacrificar o bem estar pessoal. Sentir ódio era massacrar a alma. Sentir ódio era destruir a mente. Conseguir amar... aí estava o problema. Era sempre mais fácil aproximar-se do ódio que do amor. Mas quando amava a terra tremia. Sentir amor era maravilhoso. Sentir amor era aumentar o bem estar pessoal. Sentir amor era alimentar a alma. Sentir amor era evoluir a mente. Sentir amor... era bom!

Agora, se lhe perguntassem o que mais apreciava numa pessoa, ele não saberia responder.

PRIVAÇÃO PRIVADA

Estar sozinho. Ele precisava de estar sozinho. Fazia-lhe bem, por vezes, estar sozinho. Era uma dádiva encontrar-se desacompanhado. Não sempre... às vezes... de quando em quando. Estar isolado. Uma condição que impunha a si mesmo de tempos a tempos. Era necessário assimilar a sua existência. A compreensão de um corpo no universo. A materialização de si no espaço. A desmaterialização de si nesse mesmo espaço. “Aqui me encontro só, mas nunca abandonado, aqui me encontro. Aqui não sou, lá fora serei, aqui sou viajante, passageiro, temporário. Aqui não existo de verdade. Aqui sou fruto de observação. Sou cientista em estudo. Aqui olho para além de mim, pois o meu corpo não é só o meu corpo, o meu corpo é a junção das particular, o alinhavo do tempo, o cruzamento de outros dois corpos, um produto”, pensou ele.

Determinou-se a estar afastado dos outros em estado de meditação. Não que se quisesse afastar do mundo. Não era isso. Era mais um apelo à privação. Jejuar por umas horas, por uns dias, jejuar o seu corpo. Privar-se do que o rodeava por breves instantes. Estar consigo e para si, mais ninguém. A solidão sem a condição de solitário. Somente só, desacompanhado, livre... inspirar e expirar. Aperceber-se, num breve instante, da existência de um corpo, um corpo com uma alma, uma alma dentro de um corpo. Intimidade pessoal. Contemplar a sua própria imagem e, daí, retirar conclusões. Evoluir, passar a um outro estado, crescer, regredir, avançar, recuar, ajustar e voltar... voltar ao mundo e conseguir reconhecer aquilo que em tempos foi. Passar a pente fino a sua vida e redefinir-se. Encontrar o novo eu. Descascar a cebola e encontrar novas camadas, e debaixo dessas camadas outras ainda. Olhar através das camadas e ver o centro. Assumir-se parte do todo e ver-se em toda a parte de todas as partes. Ser isto e aquilo, estar além e aquém e continuar a sentir-se vivo.

Esse espaço privado ninguém lho podia tirar.

YOU HAD A BAD DAY por DANIEL POWTER

"Where is the moment when we need it the most. You kick up the leaves and the magic is lost. They tell me your blue sky's faded to grey, they tell me your passion's gone away and I don't need no carrying on. You stand in the line just to hit a new low. You're faking a smile with the coffee to go. You tell me your life's been way off line. You're falling to pieces every time and I don't need no carrying on. Cause you had a bad day. You're taking one down. You sing a sad song just to turn it around. You say you don't know. You tell me don't lie. You work at a smile and you go for a ride. You had a bad day. The camera don't lie. You're coming back down and you really don't mind. You had a bad day. Well you need a blue sky holiday. The point is they laugh at what you say. Sometimes the system goes on the blink and the whole thing it turns out wrong. You might not make it back and you know that you could be well oh that strong. Well I'm not wrong so where is the passion when you need it the most. Oh you and I. Cause you had a bad day. You had a bad day."

From: DP

A HORA DO BANHO

Acordar ao som do nada era a melhor forma de não ficar rabugento ao longo do dia. Abrir os olhos naturalmente, espreguiçar-se na cama, deixar os ossos voltarem ao lugar, sentir a luz a entrar pelas frestas da janela, voltar a fechar os olhos, abri-los mais uma vez, levantar-se calmamente e entrar num duche de água fria dando vida a todo o corpo e iniciar o ritmo mental. Dois minutos para a água correr simplesmente pelo corpo. Deixar fluir o liquido transparente desde o topo da cabeça até à planta dos pés. Sentir o corpo a despertar. Passados esses minutos iniciava-se o ritual da lavagem. Tudo no seu devido tempo e ordem. Começava pela cabeça. Nunca por baixo. Isso seria um erro. De que servia começar a lavagem pelos pés se a água que lá chegava teria de passar pelo resto do corpo ainda maculo. O bom começo era pela cabeça. Primeiro o champô, devidamente espalhado, acompanhado de uma boa massagem capilar. Depois o a cara: ramelas, ranho, ranço; e ouvidos. O sabão entra então em acção. Ensaboava a cara e depois enxaguava. Convinha deixar a cara saborear a água por alguns momentos, só assim os poros se aperceberiam que um novo dia estava a começar. O sabão devia descer lentamente pelo pescoço, tronco, axilas, braços, rabo, sexo, virilhas, pernas e finalmente terminar nos pés. Todo este processo era efectuado calmamente, não deixando escapar parte alguma. Demorava em média oito a dez minutos, quando interiorizado e mecanizado. (Ao dizer mecanizado, não deve ser interpretado como rotineiro e sem sentido.)

Se tudo corresse na perfeição, depois de escorrer a última gota do chuveiro, ao poisar os pés nos ladrilhos pretos do chão, já o resto seria tomado com outra consciência. No espelho rectangular, embutido na parede, ver-se-ia um sorriso estampado no rosto. Este era o começo perfeito para o seu dia.