HORAS ANTES

Hoje quis dizer que vos odeio, mas a verdade é que não vos odeio e por isso não faria sentido dizê-lo. Mas por momentos senti que vos odiava. O cansaço leva-me a um esgotamento mental onde os dados não estão a ser arquivados da forma mais correcta. A catalogação está errada... mas podiam pelo menos ter celebrado comigo as felicidades da vida, podiam ter mostrado o mínimo de interesse, podiam ter-me ouvido durante dez minutos. Mas os dia foram demasiado rápidos, em tudo as horas voaram. Partiram, saindo pela janela, até ao sul. Assim como os patos, as horas também partiram para o sul. Estou cansado. Dói-me o corpo, dói-me a cabeça, dói-me a alma.

Horas antes ligo-te para dizer que temos de trocar a reunião para segunda-feira. Digo-te que ando cansado ao ponto de me ter esquecido que o concerto da Madonna é na mesma hora a que marquei a reunião. Tu ententes e soltas um riso. Desligo o telemóvel e penso que tenho mesmo de comprar uma agenda.

Horas antes tinha estado com alguns amigos a rir no café e a falar dos novos projectos. Estamos todos com vontade de trazer algo novo. E mesmo com falta de dinheiro tentamos repensar como será isso possível. Mas olhamos uns para os outros e estamos confiantes. Sorrimos. O mundo não é assim tão escuro.

Horas antes estou a sair do Atelier com o meu portfolio na mão. Saio do atelier que será o meu trabalho nos próximos tempos. Estou muito contente. Entro no carro e fumo um cigarro andes de arrancar para o café. Tento recapitular tudo o que tenho para fazer para não me esquecer de nada.

Horas antes estou no lux. Recordo algumas memórias e partilho-as contigo. Não sei porque as partilho. Tu também recordas algumas das tuas memórias. Comemos uma tosta e ainda rimos um pouco. Pedem-nos um cigarro e não damos. Passámos a noite a dar cigarros e só temos mais três. Os outros ficaram na pista a dançar. Estão drogados. Nós não estamos. Falo-te do gato. Do pobre do gato que nada tem a ver comigo e eles. O gato está perdido no meio.

Horas antes sou o Andy Warhol. Tu és a Cher e ela a Bela Adormecida. Tento imaginar como é que estas três pessoas se dariam se fossem amigas. É claro que penso na Bela Adormecida depois de acordada.

Horas antes estou perdido em Lisboa. Tento chegar ao estúdio mas o GPS falha. Estou cansado e não consigo pensar. Porque é que esta merda não funciona? Encontro. Converso. As coisas ficam decididas. Marco na agenda mental que tenho de ir comprar amostras de tecidos e aviamentos. Alguns dos coordenados têm de ser corrigidos. Marcamos uma segunda reunião para domingo.

Horas antes estive a ver o espaço onde vou expor o meu trabalho. O ambiente é estranho. Fui seleccionado. Agora tenho de me desenrascar. Tira algumas fotografias e vou tendo algumas ideias. Nunca acreditei que tão cedo estaria aqui. Rio comigo mesmo.

Horas antes o gato tenta brincar comigo mas estou tão chateado que acabo por desprezá-lo. Mesmo assim ele fica sentado a olhar para mim em tom brincalhão. Atiro a bola para o outro lado da casa e espero que ele não volte. Ele não volta.

Horas antes descubro que a surpresa não era para mim. Então não era uma surpresa para mim. Era uma surpresa para vocês. Vocês apenas queriam que eu visse a vossa surpresa. Cai-me tudo. Olho para a casa, olho para eles, olho para mim...

Horas antes ligam-me e dizem que têm uma surpresa para mim. Sorrio. Pergunto o que é e não me dizem. Insisto, estou curioso. Um gato. Pego no carro e vou a voar ter com vocês.

2 comentários:

João Roque disse...

É sempre bom correr ao encontro da surpresa, nem que seja só para quebrar a rotina...
Abraço.

Pedro Eleutério disse...

Por vezes as surpresas são mesmo surpreendentes.

Abraço grande.