DO OUTRO LADO DA VIDA

"“Era um verdadeiro filho de Macau, adorava esta terra”. É assim que o escritor Henrique Senna Fernandes recorda o amigo e colega José Silveira Machado, falecido ontem no território. O Professor, como era carinhosamente tratado pelos seus antigos alunos e pelos outros que, não tendo sido seus pupilos, lhe reconhecem a extraordinária vocação para o ensino e as suas grandes preocupações com a língua portuguesa.

Luís Sá Cunha, do Instituto Internacional de Macau, destaca Silveira Machado pelo seu papel importante na cultura local. “Viveu quase toda a sua vida em Macau e aquilo que considero mais relevante na sua vida pública foi a dedicação à cultura, especificamente ao ensino de português”, diz. “Durante muitos anos foi professor, ensinou muitas pessoas a falar português”, sublinha ainda.

José Silveira Machado veio para Macau com doze anos, para frequentar o Seminário de São José. “Acabou por não ser padre, mas o que aprendeu, em termos de língua portuguesa, no seminário, foi-lhe de grande utilidade para ensinar os alunos. Era um excelente professor”, recorda Senna Fernandes.

O escritor sublinha que não foi só na Educação que Silveira Machado desempenhou um papel de revelo. “Saiu do seminário, esteve durante o período da guerra sempre em Macau. Depois, teve funções importantes no Turismo, na área do Desporto e na Economia,” continua.
“Houve uma altura em que foi a Portugal. Eu e o meu pai, que era o presidente do APIM [Associação para a Promoção da Instrução dos Macaenses], trouxemo-lo para Macau, para voltar ao ensino da língua portuguesa”, acrescenta Senna Fernandes. “Estava infelicíssimo em Portugal, ele gostava de Macau”.

No dia do desaparecimento de Silveira Machado, o autor de “A Trança Feiticeira” frisou ainda que “era um homem que adorava a vida”. “Ele escrevia muito bem, os manuscritos dele eram muito bons. Incentivei-o sempre a que escrevesse as suas experiências pessoais, mas era um homem muito reservado sobre a sua vida.”

Também Luís Sá Cunha sublinha a importância dos seus livros, contos e crónicas. A sua última publicação, intitulada “O outro lado da vida”, foi dada à estampa há um par de anos, pouco depois de ter sido condecorado pelo então Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio.

Hélder Fernando, jornalista em Macau há mais de duas décadas, diz que “o que mais apetece recordar neste momento de tristeza pela morte, é a vida, o convívio, o brilhantismo do professor”. O jornalista conviveu “muito de perto com Silveira Machado, durante uma série de anos”.

“Todos os que fazíamos parte de uma habitual tertúlia que mantivemos alguns anos, o ouvíamos com grande atenção, era um acto de aprendizado. O professor era uma personalidade que vivera múltiplas e importantes funções, na área do Turismo, Grande Prémio, Desporto, Ensino, Cultura, Jornalismo, mundo empresarial. De todas essas vivências tinha histórias de vida para contar. E sempre um extraordinário empenho em viver.”

Hélder Fernando descreve Silveira Machado como sendo “teimoso, orgulhoso, assertivo, com um sentido de humor muito peculiar, chegando a ser uma personagem encantadora”. “Nos anos de perfeita maturidade lúcida e não dependente, era um homem à frente do tempo”, recorda ainda.

José Silveira Machado tinha 88 anos de idade. Embora nos últimos tempos, por razões de saúde, tenha deixado de colaborar com “O Clarim”, publicou, durante muitos anos e com assiduidade, crónicas no semanário católico. Era ainda membro do Conselho das Comunidades Portugueses, tendo sido eleito para o cargo juntamente com José Pereira Coutinho."

Isabel Castro

ÓBITO

“Morre Silveira Machado, figura indelével na cultura portuguesa em Macau.

O professor Silveira Machado, uma das figuras marcantes da cultura portuguesa em Macau, morreu aos 89 anos no Hospital Conde de São Januário. Professor, fundador e jornalista do semanário católico O Clarim, comentador e autor, José Silveira Machado nasceu a 24 de Outubro de 1918 na freguesia e Concelho de Velas, na ilha açoriana de São Jorge.

Estava em Macau desde a década de 30 onde chegou para estudar para padre no Seminário de S.José na companhia de outras figuras de Macau como Monsenhor Manuel Teixeira, entretanto também já falecido, e o padre Aureo Castro. Funcionário público desde Janeiro de 1941 na então chamada Repartição da Fazenda do Concelho de Macau, Silveira Machado entra em 1948 para os Serviços de Economia.

Em 1974, o professor, como era conhecido em Macau, aposentou-se em Lisboa, regressando a Macau em 1976 para iniciar a carreira de docente na Escola Comercial, Colégio Dom Bosco e no Centro de Formação dos Serviços de Educação.

Ao longo da sua carreira como jornalista, colaborou na Voz de Macau, na Revista Renascimento, O Clarim, Comunidade, Boletim Informativo de Macau, e foi correspondente do Diário da Manhã e da revista de Cinema Plateia. Fluente em cantonês, o dialecto chinês que se fala no sul da China, Silveira Machado escreveu diversos livros como Macau, Sentinela do Passado (prosa), Rio das Pérolas (poemas), Macau, Mitos e Lendas (contos), Duas Instituições Macaenses, «Macau na Memória do Tempo" e «O Outro lado da Vida» (retrato social de Macau).

Muito ligado a Macau, à juventude e à comunidade, Silveira Machado nunca descartava, como explicam os amigos, uma boa discussão. Não visitava Portugal há cerca de 17 anos e costumava dizer que se aterrasse em Lisboa, era capaz de se perder em cinco minutos. A sua actividade cívica e em prol do português em Macau valeu-lhe o reconhecimento da classe política, tendo sido condecorado com a Medalha da Ordem do Mérito Civil da Instrução Pública, Medalha de Mérito Desportivo (classe de prata), Medalha de Mérito Cultural, Comenda da Ordem do Mérito e grau de Grande Oficial da Ordem da Instrução, esta última em Janeiro de 2005 pelo então presidente português Jorge Sampaio.

Homem ligado ao desporto, turismo, educação e cultura, a sua morte é considerada uma «enorme perda» pela comunidade em geral. «Fazia amizades facilmente com todos, era disciplinado e um defensor de valores humanistas em resultado da sua formação católica que o marcou para sempre», destacou o padre Albino Pais, director do jornal O Clarim.

A sua última obra O Outro lado da Vida é um testemunho da sua preocupação com o próximo, disse ainda o prelado.”


in Lusa/Sol

RIO DAS PÉROLAS

A chuva tardou a chegar. Entrou ao de leve, à noite, pela calada, como se não fosse seu intuito que déssemos por ela. Abro a janela de manhã, já o piso está molhado, o cheiro húmido e abafado, o céu cinzento. A chuva veio para limpar o dia de ontem. A chuva veio para disfarçar a agressividade embutida nos sentimentos. A chuva veio chorar por aqueles que não choram, não vertem lágrimas, não sentem. Tu morreste e eu morri um pouco contigo meu avô. Se ao menos me tivesses contado a tua versão da tua história...

“Nos silêncios de amanhã
fiarão na distância
os ecos longínquos
deste Rio de Pérolas”

José Silveira Machado
(1918 - 2007)

QUEM?

Dou-me conta da ressaca que é regressar, de todo o tempo em que me mantenho preso a dois mundos, em que comparo todas as coisas até ao mais ínfimo pormenor. Estou no tempo de transição. Já parti mas ainda não cheguei. Em tempos acreditei que sim, que já estava de volta, mas tudo ainda me é estranho. Preciso de voltar a entranhar-me de novo para que não estranhe tanto a passagem do tempo. É tudo uma grande viagem, uma grande passagem, um aprendizado. Esta é a definição da vida como eu a conheço. No entanto, não conheço o seu sentido e estou farto das filosofias baratas que me tentam impingir.

Na minha vida já fiz muitas coisas de que me orgulho mas já fiz muitas coisas erradas de que me envergonho; já fiz o bem e já fiz o mal; percorri caminhos certos e caminhos menos apropriados, menos honestos, menos verdadeiros e, no final das contas, quando chega ao somatório, quem sou eu afinal? Quem és tu afinal? E no final das contas somos apenas nós quando não existir mais nada.