aos meus brasileiros


Faço uma pausa na história que estou a contar porque me bateram as saudades de uma vida que vivi do outro lado do oceano. Foram momentos muito especiais ao lado de pessoas extraordinárias que me fizeram viver um pouco mais, ser um pouco mais, sorrir um pouco mais, sonhar um pouco mais. Saudades de abraçar, de estar, de viver, de dançar, de conversar, do café dos Montaditos, dos cineminhas no del paseo, no aldeota, nas aventuras de Topic, o PICI do outro lado da cidade, as noites no Fafi, as noites no pequeno music box, as idas ao sushi em qualquer parte da cidade, o dragão do mar, as viagens pela TAM, as idas ao consulado e à polícia, o sentimento de estar perdido e o sentimento de me encontrar, a beira mar, a rua Osvaldo Cruz, as aventuras no centro da cidade, no beco da poeira, e tantas outras histórias que ficam por relembrar. Mas relembro uma tarde à beira-mar a caminho da casa da Débora em que sonhámos alto, cantámos e naqueles instantes éramos duas crianças felizes a ver o por do sol (não fosse a gripe que apanhei no final do dia). Mesmo que a vida continue está tudo guardado cá dentro.

A todos vocês...
Débora Silva, Brenna Damasceno, André Castro, Rachel Cordeiro, Lara Ribeiro, Patrícia Matos, Vivian Melo, Juliana Moura, Raquel Crispim, Cris Rodrigues, Aliana Aires, Erika Carvalho, Bruna Ferreira, Sílvia Magalhães, Zé Pedro Marques, Álvaro Tachibana, Apoliana, Bruno (Frika), Camila Fustagno, Eliane Moreira, Elícia Diniz, Edvane Lima, Iara Braga, Luís & Marlene, Luís Carlos Alencar, Natasha Oliveira, Jos & Peter, Rafha Castro, Vera Lins, Walkiria, Victor, Nathalie, Faradiba, Lauro Kalil, Everton, Alynne Lopes, Aluisio Neto, Clarissa Machado, Herlane Rangel, Eveline Abdon, Andreia Guerra, Rafael Grangeiro.

Se eu fosse escrever as histórias com cada um deles então é que não saía daqui. Mas ficam as lembraças da Madonna, do Rent, dos alfinetes, dos Cabarets, das agulhas de tatuar, das francesinhas numa varanda brasileira, de um cão "voador", de uma loja de B.D., das viagens na leste-oeste, do Rio de Janeiro, das festas na praia, de "Encontros e Desencontros" (Lost in Translation), do cheiro de maconha às seis da manhã na primeira casa onde estive, da parada, das discussões sobre ankle boots, das sessões fotográficas, da glamorosa a caminho de águas belas, do "grande" comissário de bordo, dos cafezinhos, do Barlacobaco (que espero que esteja a ser um sucesso), dos desfiles de moda, dos sorrisos, do samba e do forró e uma memória especial da loira! E termino por aqui senão desato a chorar. Sinto falta de todos e de tudo.
Acção passada sábado dia 28 de Abril de 2012
Quando António tenta mais uma vez ligar para Filipe

- O número que marcou não está disponível, deixe uma mensagem após o sinal.
- Filipe é o António. Já se passou um mês e ainda não deste notícias. Podias ao menos mandar uma sms a dizer que não queres falar, ao menos saberia que estavas vivo. É claro que eu sei que estás vivo, mais não seja porque a tua madrasta ainda se preocupa contigo e, acho eu, que comigo. A sério Filipe, porque é que fizeste isto? O que é que te deu para saíres de casa sem aviso? As coisas estavam a correr tão bem, agora mais do que nunca. Foi um golpe muito baixo da tua parte. Eu amo-te tanto e fazes tanta falta. Nada é o mesmo sem ti. Este mês tem sido de uma solidão como tu não podes imaginar. Mesmo que tenha uma vida e um mundo à minha volta, nada faz sentido se tu não estás. Talvez seja o hábito – podes tu dizer – mas eu digo que é o amor. Tudo o que fizemos juntos, tudo o que construímos, onze anos e meio lado a lado e desapareces sem uma justificação. Tu não sabes o sofrimento pelo qual estou a passar. Dói levantar-me todos os dias e saber que não estás cá, que não vou poder beijar-te e sentir o teu cheiro. Fazes-me falta. Merda para tudo isto. Diz qualquer coisa, qualquer coisa que seja. Aparece cá em casa para conversar-mos, preciso ver-te, saber que estás bem. Não me faças isto, não desta maneira. Um beijo com muito amor.

Desligou o telemóvel e poisou-o na secretária. Deixou-se ficar deitado no sofá do escritório. A sua vida estava a deixar de fazer sentido. Com quarenta e um anos viu tudo ir abaixo, todos os sonhos, todas as histórias montadas na sua cabeça. Depois de ter conhecido Filipe a sua vida mudara radicalmente. Saltando de ideais em ideais nunca nada era certo com ele. E foi nesta mutação constante que aprendeu a ser feliz, mesmo que tendo de mudar em muito as suas visões do mundo e do amor. Filipe fê-lo acreditar que o amor estava para lá de quaisquer regras ou limites, que o amor era algo transcendente ao entendimento humano, que o ser humano se impunha a regras desnecessárias, que muitas das vezes sofria por opção. E agora Filipe tinha ido embora.

Passada uma hora o telemóvel de António apitou com um aviso de mensagem:
Desculpa mas não quero falar.
Acção passada sexta-feira dia 25 de Dezembro de 1992
Quando António aceita a proposta feita no bar

Subiram as escadas do prédio e o coração de António começou a acelerar. Perguntava-se se estaria a fazer a coisa certa, se estaria com a pessoa certa, se estaria na altura certa. Aos vinte e dois anos ainda tinha muitas dúvidas na sua cabeça, muitas perguntas sem resposta e no entanto ali estava ele, na casa de um desconhecido que metera conversa consigo horas antes no bar. A princípio levou aquilo como uma brincadeira só que nunca pensou que essa mesma chegasse tão longe.

António tinha dúvidas no que tocava à sua orientação sexual. Nos últimos tempos tinha vindo a sentir-se atraído por outros homens e não sabia como lidar com isso. Começou a dar por si sentado em bares gay, com uma bebida na frente, onde simplesmente apreciava o que o rodeava deixando-se sempre como espectador. Tentava perceber se o que ali se passava fazia algum sentido para si. Nascido no seio do catolicismo, nada daquilo era de bom tom.

Tinha saído, naquele dia em especial, para espairecer a cabeça. Os natais em família eram sempre stressantes com todas as discussões, que anualmente não diferiam muito, e todas as falsidades que o deixavam extremamente triste. O dia, que era suposto ser para valorizar o amor e a comunhão, virava num verdadeiro inferno.

A porta já estava aberta, mas António, perdido nos seus pensamentos, nem tinha dado por isso.

- Podes entrar, não tens de ficar à porta. Eu tenho de ir só à casa de banho, entra e fica à vontade. A cozinha é ali, tens bebidas no frigorífico, podes servir-te que eu volto já.

António olhou à sua volta e deparou-se com uma casa caótica, a precisar de uma boa limpeza. Por todo o lado podiam ver-se roupas espalhadas, livros amontoados, cinzeiros a abarrotar distribuídos por todos os cantos, a mesa ainda posta com os restos do jantar e algumas plantas meio mortas no parapeito da janela. Arregalou os olhos e pensou que o melhor era nem dirigir-se à cozinha.
Acção passada sexta-feira dia 13 de Junho de 1997
Quando Rodrigo tem um acidente de carro

Os raios de sol estavam a cortar a visão de Rodrigo e nem os óculos de sol o ajudaram quando, sem dar por isso, estava com a frente metida na traseira do outro carro.

- Merda! Merda! Merda! – acabara de bater com o carrinho novo em terceira mão que os pais lhe compraram depois de ter tirado a carta. Pôs os quatro piscas e saiu do carro. – Peço imensa desculpa mas fiquei bloqueado com o sol. Está aqui um caso feio.
- Você é mas é parvo. Dão carros a miúdos e depois é o que dá. Sabe, eu tenho de ir buscar a minha filha à escola e não tenho vida para isto. Há gente mesmo estúpida.
- Já lhe pedi desculpas. Não precisa de falar assim. Agora temos é de resolver a situação para cada um poder seguir a sua vida.
- E esperemos que seja por caminhos bem distantes. Vamos mas é escrever a carta amigável e sair daqui.
- A carta quê?
- Era só o que me faltava. Estes miúdos de hoje em dia não percebem nada de nada. Para vocês é tudo muito giro. Ai que giro ter carta, ai que giro ter carro, ai que giro o caralho.

Foi então que apareceu uma terceira pessoa – Precisas de ajuda? – dirigindo-se a Rodrigo. – As coisas podem resolver-se a bem e não é preciso ninguém insultar ninguém – disse para o homem de família.

Com a sua ajuda preciosa Rodrigo conseguiu resolver o problema e em menos de meia hora estava com o carro estacionado ali perto.

- Muito obrigado pela ajuda. Se não fosses tu acho que o homem ia descarregar em cima de mim toda a frustração de uma vida. Agora resta saber como vou contar aos meus pais.
- Queres ir tomar um café para acalmares os nervos?
- Deixa estar. Deves ter coisas para fazer.
- Está um café mesmo ali à frente. Tens a certeza que queres pegar já no carro?

Atravessaram a estrada e sentaram-se na esplanada do café. Estava um dia de sol maravilhoso.
Acção passada sexta-feira dia 20 de Agosto de 1999
Quando Rita resolveu dar uma festa na casa de praia porque é giro dar festas

Rita tinha doutoramento em comportamento de anfitriã. Ninguém melhor do que ela para planear, organizar e gerir uma festa. Era incansável a sua constante atenção aos pormenores e ao bem estar de todos os seus convidados. A única pessoa de quem ela sempre se esquecia era da sua filha Maria, contando sempre com a presença de Filipe para lhe fazer “babysiting”. Mas naquele fim de semana Filipe ficou em casa doente deixando assim Maria desamparada no fantástico universo de Rita.

Maria apreciava de longe a sua mãe em acção. Com um copo de vinho na mão tentava ganhar as forças suficientes para aguentar até domingo à tarde, dia em que regressariam de novo às suas vidas citadinas. Maria só conseguia pensar no ódio que tinha ao seu carro que constantemente ia parar à oficina. E quanto mais bêbeda ficava mais vontade tinha de fumar, mas era melhor não o fazer ou então aí é que o fim-de-semana tornar-se-ia num inferno. Se havia coisa da qual a mamã Rita fervia em pouca água era em ver a sua filha fumar – A Maria não sabe o quão desagradável é vê-la fumar. Onde é que estes jovens têm a cabeça? A menina não vê que até lhe fica mal... – e discursos destes repetiam-se vezes sem conta. E não tardou a que Rita viesse ao seu encontro.

- A menina tá a fazer o quê aqui a um canto? Vá pó meio das pessoas e socialize. Tá triste por o Filipe não ter vindo? As pessoas também têm o direito de ficar doentes. Sabe quem tá cá? O António, o actor, filho dos Quintas. Ele tem a sua idade, porque é que não vai falar com ele.
- É assim tão chato que eu fique aqui no meu canto?
- Ai Maria, Maria você tem tanto que aprender! Ou a menina acha que a mamã chegou a algum lado a ficar quieta no canto? Mas você é que sabe, a vida é sua. Agora se não se importa a mamã vai circular e você meta um sorriso nessa cara. – E passados nem dois segundos já Rita estava em grandes conversetas com a tia Leonor e a cunhada Becas gesticulando muito como se estivesse num espectáculo de pantomima.

Maria voltou-se para o parapeito da varanda e ficou a olhar as ondas a bater na praia. O som do mar levava-a a viajar para fora daquele mundo em que a sua mãe julgava ter um papel importantíssimo mas, apesar de tudo, Maria adorava a sua mãe quando em estado normal.

- Queres um cigarro? – disse a pessoa que se tinha colocado ao seu lado a ver o mar expelindo o fumo do seu cigarro. – Pareces um bocado tensa?

Quando Maria viu quem era até se passou – Não foi a minha mãe que te mandou vir cá pois não? É que não tenho nada para te dizer e muito menos me interessa fazer conversa de ocasião.

– Tirou um cigarro do maço que ele lhe estendia. – Tens lume?
Acção passada quinta-feira dia 16 de Março de 2000
Quando Maria obriga Filipe a ir à estreia da peça “Paris à luz das velas”

A noite estava especialmente fria, como se o inverno estivesse a querer gastar os seus últimos cartuxos antes do início da primavera, mas pelo menos não ameaçava chover. Até ao teatro a rua era íngreme e escura e Filipe não estava muito confortável com essa situação. Ruas daquelas lembravam-lhe sempre os assaltos ao estilo de Hollywood.

- Posso perguntar o que estou sequer a fazer aqui? É mesmo necessário passar por isto? Já te tinha dito que não sou grande fã de teatro e especialmente daquela bimba da Luísa Matias. Quando é que essa mulher percebe que o seu lugar não é num palco mas sim numa casa de alterne. Fico-te muito grato pelo jantar que, não desfazendo, estava maravilhoso, mas temos mesmo de vir assistir a isto?
- Irra que tu és chato Filipe! Já não te disse que o António ofereceu um bilhete duplo para a estreia da sua peça. Como eu não queria vir sozinha e já que tu és o meu melhor amigo...
- Se eu sou o teu melhor amigo porque é que eu nunca ouvi falar desse António?
- É claro que já ouviste. A mamã está sempre a elogiá-lo. Sempre que ele faz alguma coisa nova a mamã passa jantares inteiros a dissertar sobre o menino de ouro. E tu jantas lá em casa as vezes suficientes para já teres ouvido falar dele. Vá, não te faças de desentendido. O António é o filho do Augusto, aquele grande amigo dos meus pais. Mas também só tive uma ou duas vezes com ele. Uma vez foi quando ele me salvou de um jantar aborrecidíssimo com a família toda e amigos de amigos. Se não fosse ele aquele teria sido o pior dia da minha vida, e não, tu não estavas lá porque estavas doente. Mas eu e o António nunca chegámos a grandes intimidades... não que eu me importasse.
- Bitch!
- Isto para chegar à conclusão de que o Augusto e a Madalena passaram lá por casa no outro dia e entregaram-me o convite que o António tinha guardado para mim. É impressão minha ou estás com ciúmes?
- Não sejas parva Maria! Se temos mesmo de ir ver esta peça então que assim seja. Também já estamos aqui. Ao menos os lugares são bons?
- É na terceira fila.
- Menos mal!