A CARTA

Preparou a cama para se deitar. Fechou os olhos e não demorou muito para que adormecesse. Pela porta entrava uma brisa que o esfriava naquela noite quente. O dia tinha sido calmo. Era domingo, e como qualquer domingo, em que parte do mundo se estiver, é um dia em que as ruas parecem desertas, os carros ficam na garagem, o ar apresenta-se sereno e os pensamentos fluem a mil à hora. E, finalmente, deitou-se para acordar numa segunda-feira agitada, em que a cidade acordava às cinco da manhã, o barulho nas ruas era ensurdecedor, em que as pessoas andavam agitadas para se dirigirem aos postos de trabalho, para viver mais um dia de labuta.

Mas a sua segunda-feira começou mais cedo do que esperava. Acordou a meio da noite com um terrível pesadelo. Sonhara com o seu amor, sentado algures, a ouvir uma voz segredando-lhe ao ouvido coisas terríveis sobre os dois. A voz aliciava-o a pensar coisas tenebrosas do propósito dos objectivos da viagem, das incertezas ao amor partilhado pelos dois, à ideia de que a sua partida não fora mais do que uma forma de encontrar uma nova vida da qual ele não fazia parte, do seu egoísmo em deixá-lo sozinho naquela casa que construíram para os dois morarem... A distancia e a saudade estavam a trabalhar no seu cérebro, deixando-o ainda mais perdido na sua viagem. Todas aquelas coisas mexeram com ele. A noite parecia mais escura do que nunca. E o som daquela voz ecoava por todos os cantos do quarto.

Ficou sentado na cama esperando o tempo passar. Queria correr da sua cabeça a memória daquele sonho. Mas estava a ser uma tarefa complicada. E não conseguindo cerrar os olhos agarrou numa folha e numa caneta e escreveu uma carta ao seu amor:

"Meu amor,
acho não consegues imaginar o que é estar longe. O que é ter saudades. Tu não estás longe do teu mundo, da tua família, da tua vida! Tu apenas viste uma parte da tua vida partir. Eu vi um mundo inteiro deixado para trás quando apanhei aquele avião. Da janela tudo começou a ficar mais pequeno, mais distante, longínquo e por fim apagado pelo oceano. Um mundo que não tão cedo vou voltar a ver. Aterrei no desconhecido. Tive de lançar novas bases para poder sobreviver. Não é fácil largar tudo! E no primeiro momento em que me vi aqui, sem ti, a primeira vontade foi fazer as malas e regressar para a nossa casa.

Tu acordas de manhã, sais à rua, naquela rua que nos é tão familiar, tomas o teu café, compras o teu tabaco, e rumas à tua vida montada, sem irregularidades. Tudo te é familiar. Agarras no telefone e combinas um café com as pessoas que tanto gostas. Elas estão mesmo ali, para ti e num segundo estás rodeado daquilo que sempre te fez feliz. E podes falar com elas, estar com elas, senti-las. Eu não! Eu tenho que recomeçar tudo outra vez. Sair de casa sem saber onde estou. Sair de casa para o indefinido do que será o meu dia. Sair para o vazio. E se, para ti, deve custar chegar ao fim do dia e veres que só estás tu na nossa casa, imagina o que é ficar sozinho da minha vida o dia todo.

Não te quero deixar preocupado comigo. É claro que vou encontrar novas pessoas com quem estar, falar, desabafar. Mas não deixa de ser um mundo efémero, que fica cá. E quando eu voltar posso não encontrar o que deixei onde deixei. Eu viajei para o desconhecido e a verdade é que voltarei para o desconhecido. Tu estás no teu espaço, na tua vida, podes mudar o que queres e quando queres. E quando eu voltar podes mesmo não aí estar. Para ti será sempre o conhecido.

É sempre mais fácil culpar aquilo que não se vê do que aquilo que se vê. Ainda não coloquei nenhuma fotografia tua no meu placard (falha minha) mas acredita que tenho mil imagens e recordações de ti junto ao meu coração. Fiquei abalado com um sonho, ou deveria chamar-lhe de pesadelo, e preciso que leias o que tenho para te dizer. Provavelmente nada disto faz sentido, mas sonhei que uma voz segredava ao teu ouvido coisas maléficas sobre nós.

A voz não parava de dizer que eu tinha posto os meus interesses à frente da nossa relação. Se ser feliz não está implícito na nossa relação... então digo aqui, bem alto, que pus os meus interesses à frente. Agora, se prezamos a felicidade de cada um compreendes que precisei de voar. Voar para aprender mais um pouco da vida, para um lugar onde me possa completar mais um pouco, experienciar mais um pouco. Aprender aquilo que só se aprende uma vez na vida. E sabes como eu me sentia naquela faculdade. Estava a tornar-me uma pior pessoa, estava a deitar-me abaixo, estava a perder-me na tristeza daquele ensino. Entendo que seria mais fácil para nós se eu aguentasse tudo aquilo e ficasse aí. Mas ambos sabemos que esse espírito não faz parte de mim... e saltei, saltei pelo oceano para aprender um pouco mais aqui, e já me sinto uma pessoa mais rica.

Fico com receio de que não tenhamos falado o suficiente sobre esta viagem, e agora aquela voz não me sai da cabeça, aquelas palavras, mas quero que fiques a saber o que penso. Uma vida a dois não compreende estarmos colados um ao outro. Compreende, sim, amarmo-nos... onde quer que eu esteja, onde quer que tu estejas. No momento em que nos deixar-mos de amar, aí sim, terminou a nossa vida a dois, não enquanto estamos longe pela distância. Quem ama verdadeiramente não faz estas coisas, disse-te a voz ao ouvido. Então essa pessoa não sabe o que é amar. Essa pessoa só sabe o que é possuir. O amor não se possui, não é algo que se possa comprar. O amor tem de existir.

Estou abalado com tudo isto. E a ideia de que possas pensar que não fazes parte da minha vida agora que eu estou aqui, deixa-me aterrorizado. E por isso continuarei a escrever-te as últimas novidades para que não percas pitada do que se passa aqui. E falaremos ao telefone horas seguidas para que o rasto da nossa voz não se perca. Em relação à tua boca, ao teu corpo, ao teu sexo... seria mais fácil não sentir nada disto, mas se o sinto é porque existes em mim!

Se eu pensasse em ti nem embora tinha ido, disse-te também a voz ao ouvido, e essas palavras martelaram-me a cabeça. Se não me tivesse deixado vir embora provavelmente já tinha deixado de pensar em ti. Tu foste a pessoa que me deixou partir, que me deixou voar, a pessoa que nunca deixou de me amar... aquele que eu quero ao meu lado."

Acabou de escrever a carta e adormeceu. No dia seguinte, olhou para aquelas palavras e pensou no seu absurdo. Se ele enviasse a carta ao seu amor estaria a alarmar algo que apenas existiu na sua cabeça, no seu sonho (ou pesadelo), naquela noite quente de domingo para segunda. Dobrou a carta cuidadosamente e enfiou-a na gaveta. Foi só um sonho. Só um sonho.

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