Estacionou o carro mesmo em frente à porta de casa. Incrivelmente, dois lugares esperavam ali por si. Não era costume deparar-se com esta fartura de estacionamento. A vê-lo estacionar estava o seu vizinho do rés do chão. Sempre com aquele olhar vazio de quem viu o mundo a deixar de fazer sentido aquando da morte da sua mulher. Já tinha a sua idade e percebia-se que a vida para ele deixara de ter lógica ou propósito. Estacionou o carro, desligou o rádio, puxou o travão de mão, saiu e fechou a porta. Olhou para o vizinho e desejou-lhe um bom dia. Não obteve resposta. O vizinho permaneceu parado à porta do prédio. Quando se dirigiu à porta ficou indeciso em qual seria a melhor forma de passar por ele sem o incomodar, visto os seus pensamentos estarem aluados da realidade presente. Limitou-se a usar um simples ‘Com licença’. O vizinho olhou fundo nos seus olhos e disse com um ar muito saturado, ‘É a vida!’, e permaneceu ali, quieto, como se ele nunca tivesse passado por ali, nunca lhe tivesse dito nem bom dia nem com licença. Mas aquele ‘É a vida!’ deixou-o incomodado. A profundidade da frase banal entrou em choque no seu cérebro. Como se este soubesse o que lhe ia na alma. Como se este tivesse andado a escutar pelas paredes os meandros da sua vida, espiando-o pelo buraco da porta. Ficou a pensar nas pessoas estranhas que cruzavam a sua vida, deixando dicas, desconfortos, alegrias, tristezas e sempre por poucas palavras, por escassos momentos. E talvez seja por isso. Por serem breves histórias, momentos passageiros, livros por ler. Aparecem, soltam as primeiras linhas e nunca saberemos a continuidade do que nos poderiam dizer... e talvez não tivessem mesmo mais nada a dizer. Vidas!
2024 / 10 álbuns [2]
Há 3 horas