O EMPREGADO SORRIDENTE

Fico sentado naquela casa que é a minha. Observo as coisas à minha volta e, apesar de algumas divisões ainda estarem uma confusão, já a começo a sentir como se fosse o meu espaço. Ainda precisa de algumas mudanças mas o tempo que disponho não é muito. Abraço-me na condição de solitário sem qualquer mágoa embutida, sinto o meu corpo e isso chega-me para que me sinta vivo.

Na condição de morto está o dia do meu funeral, que nesta altura do ano seria despropositado de fidelidade amistosa. Tenho de uma vez por todas deixar de acreditar que D. Sebastião ainda vai voltar e assim deixo de sentir qualquer apreço pelos dias de nevoeiro. É Inverno e está um calor de morte. O que se passa com o tempo? A viagem parece não estar terminada. Falta aquele gostinho do frio matinal, do cheiro do inverno, da luz romba.

*

Dobro-me junto a cama, levanto um pouco o colchão e apercebo-me da quantidade de pó que por ali anda. É preciso limpar. É sempre preciso limpar o pó que se acumula debaixo da cama. Os restos de vida que vamos deixando de lado, que vamos esquecendo até se tornarem pó. Afinal, no fim, todos somos pó.

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- Estão a gostar da noite? Estão a divertir-se?
- Estamos, não te preocupes!
- Gosto de ver as pessoas felizes...

Se ao menos fizessem um sorriso para o demonstrar. Tudo é tão artificial. Desespero por aquele abraço que me transmite a verdade, mas ficamos todos pelos sorrisos de esguelha e os olhares de um outro tempo. Dói-me o peito, uma picada aguda, talvez ir ao médico deva ajudar!

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Sentas-te ao meu lado. Sei que vens com boas intenções, eu é que não estou para aí virado. Estou mais intencionado em acabar o meu cigarro e cheirar a noite. Hoje o céu está limpo e aqui ainda é possível ver as estrelas no céu com clareza. Mas podes ficar, em silencio, a apreciar tudo isto comigo. Sei que tens estado ao meu lado, mas ainda não és aquela pessoa para quem vou ligar quando estiver deprimido. Não és tu nem ninguém.

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Acordo e ainda é de noite. Merda! A questão é que já é de noite e o meu dia foi perdido. A casa continua no mesmo lugar apenas está virada do avesso. É preciso calçar as luvas de borracha e dar uma volta a isto tudo. Tinhas ficado de me ligar mas ainda não o fizeste. Por outro lado ainda bem, não tenho vida para isto. E digo isto sem saber quais são os teus propósitos, mas quaisquer que sejam sei que são diferentes dos meus.

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Os dias são compridos. Faço demasiadas coisas para apenas vinte e quatro horas, mas quando dou por mim já passou uma semana e outra e apenas parece que só tenho mais trabalho e a nível de produção nada! Queria poder mandar o meu patrão para o outro lado, mas há momentos da nossa vida em que não podemos desistir assim. Há que enfrentar as feras. Quanto aos outros empregados há que continuar a sorrir-lhes e faze-los pensar que está tudo bem. Mesmo que um meteorito tenha aterrado mesmo em cima da casa e esta esteja num estado tão lastimoso que seja impossível viver. Mas está sempre tudo bem! E com um sorriso estampado na cara passo por todos eles para me dirigir ao carro, entrar nele e fazer mais uma viagem de regresso a casa sem o rádio ligado por puro esquecimento. Tenho tantos pensamentos ao mesmo tempo que nem me dou conta do silêncio.

O QUE ME FAZ SORRIR perguntou a Soraia...

- Quando vejo as minhas séries favoritas.
- Quando penso em musicais.
- Quando penso em mim a ser uma personagem num musical.
- Quando ouço as minhas músicas favoritas.
- Quando vejo as pessoas que gosto.
- Quando penso nas pessoas que gosto.
- Quando me lembro de coisas engraçadas.
- Quando recordo momentos bonitos com outras pessoas.
- Quando acho que tive uma boa ideia.
- Quando passei uma boa noite com alguém e acordo no dia seguinte a pensar que tudo foi perfeito quando olho para o lado e a vejo a dormir.
- Quando recebo uma boa nota.
- Quando recebo um comentário honesto.
- Quando compro um objecto que desejo há muito tempo (sorrio genuinamente)
- Quando compro um objecto que desejo (sorrio porque o adquiri)
- Quando sinto que as pessoas à minha volta estão felizes.
- Quando consigo fazer as pessoas à minha volta felizes.
- Quando leio certas frases de certos livros.
- Quando me abraçam com vontade.
- Quando me dizem uma coisa bonita.
- Quando vejo um filme que me toca no fundo.
- Quando vejo, leio, ou ouço algo que desperte a parte romântica e deixe aquele sentimento que ainda é possível acreditar.
- Quando me oferecem aquelas prendas inesperadas que eram mesmo aquilo que eu queria.
- Quando me oferecem um simples cartão com aquela frase que eu precisava de ouvir.
- Quando o pôr do sol está lindo.
- Quando faço uma grande viagem a conduzir pelo prazer que ela me dá.
- Quando tenho uma discussão interessantíssima e sinto que cresci mais um pouco.
- Quando vejo algo na rua que nunca tinha reparado mas que me chamou a atenção.
- Quando sinto que os outros se preocupam comigo.
- Quando dou sem precisar de receber.
- Quando acabo de escrever um texto e sinto que está muito bom.
- Quando vejo ou ouço a Madonna.
- Quando as pessoas me irritam e apercebo-me que elas não estavam a fazer por mal e eu é que entendi tudo errado.
- Quando estou a pintar.
- Quando toco violino.
- Quando faço invenções culinárias e o cozinhado ficou a coisa mais horrível do mundo e vou ter de cozinhar outra coisa qualquer.
- Quando acabo de arrumar a casa e vejo tudo limpinho.
- Quando tiro o saldo do cartão e tenho mais dinheiro do que a última vez que olhei.
- Quando uma noitada na discoteca acaba e sinto que me diverti mesmo.
- Quando penso que me vou encontrar com as pessoas que amo.
- Quando recebo uma chamada de alguém especial.
- Quando recebo uma chamada de alguém que eu já não vejo e/ou falo há muito tempo.
- Quando ganho num jogo de cartas.
- Quando aterro no aeroporto de uma cidade onde eu quero muito estar.
- Quando me fascino com os pequenos pormenores da vida.
- Quando sai um novo musical.
- Quando entro num teatro.
- Quando viajo com "aquela" pessoa.
- Quando penso nestas coisas todas que me fazem sorrir.
- Quando penso que muito mais coisas teria para escrever...

CONJUGAR

Sou da opinião que o mundo se rege por uma partitura bastante simples: «Eu, tu, ele, nós, vós, eles». Contudo não me posso deixar enganar por tal simplicidade que inicia qualquer conjugação de um verbo. Resta saber se esse verbo se encontra no passado, presente ou futuro. Mas vamos por partes, que cada qual tem a sua complicação:

Eu – O tão famoso eu, o centro, de nós para fora, de fora para nós. O mundo à volta existe sempre melhor aos nossos olhos, segundo a nossa visão. Por vezes corações moles, por vezes egoístas. O eu necessita de um espaço de segurança, de um canto, de um esconderijo. Tudo o que se refere ao eu é sempre mais complicado. É sempre confuso, é sempre para lá do real. Um quarto escuro com muitos fantasmas. E conhecer esse eu na sua totalidade é uma tarefa impossível, até para o próprio eu.

Tu – Aquele que o eu busca desesperadamente, uns mais, outros menos, mas é o mal dos males em estar mal. O tu tem sempre, pelo menos, três versões: O idílico, o real e a deturpação desse real. Buscamos o idílico, aquele que nunca será real. Aceitamos a hipótese dele não existir e tentamos encontrar o real que mais se aproxima, mas repetidamente trocamo-lo mentalmente pela deturpação desse real, vendo algo que não está lá (mas que continuamos a julgar estar). Reside ao eu encontrar a paz nesse tu, tentando sempre vê-lo o mais real possível.

Ele – O ele é a dor de cabeça do tu. Existe sempre um ele nas relações. Um terceiro elemento. Uma história do passado, um flirt do presente ou mesmo uma traição. Mas o ele tanto pode ser real como uma mera fantasia do tu. O ele pode ser um elemento chave, como pode ser o que deita tudo a perder. O ele existe por milhentas razões, mas este não é o momento para detalhar de forma tão específica.

Nós – É a forma como o eu e o tu processam o facto de estarem juntos. Quem é cada um como um e como são como um nós. Como é que esse nós se dá entre eles, e esse nós com o que os rodeia. Como decidem o eu e o tu viver esse nós, qual o estratagema. O nós só consegue existir perante regras. E que regras são essas? Cada nós terá as suas.

Vós – Todos aqueles que rodeiam o eu, o tu, o nós (no caso de existirem estes dois últimos). Todos aqueles com quem interagimos no dia-a-dia, por necessidade, por vontade, pelo simples facto de se cruzar na rua, de ligar uma televisão, abrir um livro, escutar uma música. Sem o vós tudo perderia cor. O vós entretém-nos, completa-nos, acrescenta-nos.

Eles – Para continuar a falar do vós é preciso apresentar o eles. Dos vós, os eles são aqueles que são mais chegados. O grupo de pessoas com quem o eu decide uma partilha mais profunda, mais da alma, mais das vísceras. Contudo, a importância do vós não deixa de ser notoriamente importante. Pois muitas vezes o eu suporta a sua existência na música que ouve, nos livros que lê, nos teatros que vê, etc.... o que não existiria sem o vós. Mas é no eles que o eu encontra a vontade de, mais tarde, partilhar todas essas sensações.

Eu, tu, ele, nós, vós, eles, acima de tudo, precisam de dialogar – com todas as formas que encontrarem, sem esse dialogo não existe conjugação! Eu amo; Tu amas; Ele ama; Nós amamos; Vós amais; Eles amam. Apesar de ser um eu com poucas perspectivas no romance...

TUDO OU NADA

Estou, novamente, de roda aos textos do passado. Não consigo evitar o seu estado morto na estante da sala. Eles precisam ser abertos de quando em quando, ser lidos, manuseados, contemplados. É nas palavras que nos magoamos, que nos amamos, que nos sentimos presos ou livres. São as palavras que nos confortam, que nos repelem, que nos apaixonam. E o silencio literário é o meu escape. Na verdade tudo é mais fácil do que viver a nossa própria vida.

Voltei ao Frederico. Há qualquer coisa na tragédia e no heroísmo que ainda mexe comigo. E ao mesmo tempo a necessidade de visualizar o impossível que é tão mais fácil de viver. De nada vale comprar horas extra, comprar um momento, comprar uma palavra que seja. De tudo vale viver uma hora extra, um momento, uma palavra que seja, beber do doce ardor que atrai o nosso repugno. E mesmo que nada faça sentido, mesmo que tudo seja apenas mais um tudo, ao menos ele é, ele existe, está lá, foi nosso.