SÓ AMIGOS

Como eu era em 1972 e muito tempo já passou
As cartas queimadas em fogueiras juvenis
São o passado não muito distante
Entre um depois e um antes que nunca chegou a ser nosso
Amigos sem amor
Casámos em sentimentos de criança, casámos e cansámo-nos
De tudo, não de tudo, de um pouco
Do que seria o nosso futuro
Prometido a muitos
Sem nós nem laços de gravata
Subimos a rua que ia em direcção ao café
E o mundo que nos cercava era estranho
Já na altura
Tu com ela e eu com ele
Sem vista a um ponto final
Um stop
Certeiro no meu caminho, infinito no teu
As memórias recordadas num jardim de Inverno
Na noite de chuva e de luz
O correio atulhado de presentes nunca abertos
E o sábio discurso de pais abandonados do amor dos filhos
Partimos no comboio para fugir
Mas não chegámos nem à estação sem que disséssemos adeus
E as voltas que demos
São as voltas de um árduo destino por concretizar
Era certo que um dia chorarias a meus pés
Com lágrimas suficientes para alagar a minha casa
No sofá cama onde te deitaste para assistir ao ridículo jogo que passava na televisão
Sem comida nem bebida apenas o tabaco a encher o espaço vazio entre nós
Entre o teu coração e o meu sofrimento
Fiz-te o café da manhã para que tudo parecesse perfeito
Sem efeitos especiais ou cortes cinematográficos
Mas não ficaste mais uma vez
A porta já estava aberta e tu pronto para sair
E no chão de mosaicos da casa de banho fiquei deitada
Estava fresco e eu tinha calor
E dia após dia voltavas com o mesmo sonho
As mesmas recordações os mesmos desgostos
E ao ouvir por mais uma vez o som da porta
Escorregadia
Esgueirei-me para a sala e surpreendi-te com um jantar que ficou para a história
Belos poemas foram as nossas palavras
E sem a mínima intenção de te ferir espetei-te uma faca no peito
Não uma faca, um desejo realizado
Mas para ti a vida continuava e mais uma vez partiste
E de dia para dia cravava mais fundo a faca
Não só em ti
Em mim também cravei para que fossem visíveis as marcas
Mas éramos só amigos
Dizias tu – Só amigos
Sentei-me na janela a ver a chuva cair
Que coisa mais patética ver a chuva a cair
E que tinha de errado a chuva a cair
Nada
Era apenas chuva e estava a cair
Como eu estava a cair aos bocados
Primeiro a mão direita
Depois a mão esquerda e assim em diante
Os pés, o sexo, a cabeça…
Quando me viste pela última vez era apenas pedaços
Estendidos à tua frente prontos para te receber
E mais uma vez entraste triunfante pela sala
Ligaste a televisão e disseste que precisavas de um tempo
Todo o tempo era para ti
Que podia eu fazer senão olhar para ti
O teu corpo difícil de entender
Os teus olhos ambíguos
E provavelmente já não saía de casa com medo de não estar para te abrir a porta
De não estar para libertarmos poesia pelos poros
E era poesia de dois caminhos afiados
Já não quero saber dele
Dei por fim a uma magia fingida em retalhos de tecido foleiro
Foi o seu corpo que me disse que o fizesse
É sempre o corpo que nos diz o que temos de fazer
Sem sentir um único arrepio disse que já não o queria
Que queria viver sem morrer vezes sem conta
Para que tu e eu sobrevivêssemos ao naufrágio que estávamos a germinar
E não passei de uma cabra lamechas
E por fim fodeste com uma puta e arrependeste-te
Não mais eras digno de amar
E ela naufragou assim como eu
E a minha porta ficou aberta dias sem fim
Esperava que desses entrada
Mas tu não apareceste
Éramos só amigos dizias tu
Só amigos.

A HISTÓRIA de Brandi Carlile

“Todas as linhas que marcam a minha cara contam a história de quem eu sou. São tantas as histórias dos lugares onde estive e de como cheguei aqui. Mas estas histórias não têm qualquer significado quando não tens ninguém a quem contar. Eu subi até ao pico das montanhas, nadei por todos os oceanos azuis, passei os limites e quebrei todas as regras. Tu vês o sorriso que está na minha casa, ele esconde as palavras que não saem. E todos os meus amigos que pensam que sou abençoado... eles não sabem que a minha cabeça está uma confusão. Não, eles não sabem quem realmente sou e pelo que passei, não como tu sabes...”

HORAS ANTES

Hoje quis dizer que vos odeio, mas a verdade é que não vos odeio e por isso não faria sentido dizê-lo. Mas por momentos senti que vos odiava. O cansaço leva-me a um esgotamento mental onde os dados não estão a ser arquivados da forma mais correcta. A catalogação está errada... mas podiam pelo menos ter celebrado comigo as felicidades da vida, podiam ter mostrado o mínimo de interesse, podiam ter-me ouvido durante dez minutos. Mas os dia foram demasiado rápidos, em tudo as horas voaram. Partiram, saindo pela janela, até ao sul. Assim como os patos, as horas também partiram para o sul. Estou cansado. Dói-me o corpo, dói-me a cabeça, dói-me a alma.

Horas antes ligo-te para dizer que temos de trocar a reunião para segunda-feira. Digo-te que ando cansado ao ponto de me ter esquecido que o concerto da Madonna é na mesma hora a que marquei a reunião. Tu ententes e soltas um riso. Desligo o telemóvel e penso que tenho mesmo de comprar uma agenda.

Horas antes tinha estado com alguns amigos a rir no café e a falar dos novos projectos. Estamos todos com vontade de trazer algo novo. E mesmo com falta de dinheiro tentamos repensar como será isso possível. Mas olhamos uns para os outros e estamos confiantes. Sorrimos. O mundo não é assim tão escuro.

Horas antes estou a sair do Atelier com o meu portfolio na mão. Saio do atelier que será o meu trabalho nos próximos tempos. Estou muito contente. Entro no carro e fumo um cigarro andes de arrancar para o café. Tento recapitular tudo o que tenho para fazer para não me esquecer de nada.

Horas antes estou no lux. Recordo algumas memórias e partilho-as contigo. Não sei porque as partilho. Tu também recordas algumas das tuas memórias. Comemos uma tosta e ainda rimos um pouco. Pedem-nos um cigarro e não damos. Passámos a noite a dar cigarros e só temos mais três. Os outros ficaram na pista a dançar. Estão drogados. Nós não estamos. Falo-te do gato. Do pobre do gato que nada tem a ver comigo e eles. O gato está perdido no meio.

Horas antes sou o Andy Warhol. Tu és a Cher e ela a Bela Adormecida. Tento imaginar como é que estas três pessoas se dariam se fossem amigas. É claro que penso na Bela Adormecida depois de acordada.

Horas antes estou perdido em Lisboa. Tento chegar ao estúdio mas o GPS falha. Estou cansado e não consigo pensar. Porque é que esta merda não funciona? Encontro. Converso. As coisas ficam decididas. Marco na agenda mental que tenho de ir comprar amostras de tecidos e aviamentos. Alguns dos coordenados têm de ser corrigidos. Marcamos uma segunda reunião para domingo.

Horas antes estive a ver o espaço onde vou expor o meu trabalho. O ambiente é estranho. Fui seleccionado. Agora tenho de me desenrascar. Tira algumas fotografias e vou tendo algumas ideias. Nunca acreditei que tão cedo estaria aqui. Rio comigo mesmo.

Horas antes o gato tenta brincar comigo mas estou tão chateado que acabo por desprezá-lo. Mesmo assim ele fica sentado a olhar para mim em tom brincalhão. Atiro a bola para o outro lado da casa e espero que ele não volte. Ele não volta.

Horas antes descubro que a surpresa não era para mim. Então não era uma surpresa para mim. Era uma surpresa para vocês. Vocês apenas queriam que eu visse a vossa surpresa. Cai-me tudo. Olho para a casa, olho para eles, olho para mim...

Horas antes ligam-me e dizem que têm uma surpresa para mim. Sorrio. Pergunto o que é e não me dizem. Insisto, estou curioso. Um gato. Pego no carro e vou a voar ter com vocês.

PÉS E GATOS

Raio e coriscos. Tudo muda. Tudo é vida alternada de um outra vida. Tinha uma vida. Tinha um mundo. Tinha esperanças e sonhos. Hoje tenho outra vida. Tenho outro mundo. Outras esperanças. Mas olho para trás e vejo que os sonhos são os mesmos. E repito na minha cabeça dia após dia. Certifico-me de que ainda é neles que acredito. Os sonhos. Por vezes desconexos. Por vezes em perfeita sintonia. Liberdade. Amor. De tudo. Para tudo. Tento encontrar significados para as coisas. Abraçar sem deixar cair. Saltar para o outro lado do muro. Há revolta. Há sempre revolta. E salto planícies. Campos. Cidades. Abismos. Voo sobre os rios. Mares. Oceanos. E sinto o vento. E sinto-te. Sei que estás lá para mim. Ouço a tua voz. Ouço o teu respirar. E a brisa corre. Dissipa-se. Mas ficaste. E adormeço. Adormeço melhor por saber que não estou só. Mesmo quando estou. Olho à minha volta. Esta é a minha vida. Ponto de partida. Avançar. O sinal está verde. Mas o pé tem medo de carregar no acelerador. O pé sente aquilo que o coração sente. O pé avisa. O pé não é só um pé. E vejo-te a viver a minha vida. A minha casa. O meu amor. O cheiro das coisas que em tempos me fizeram sorrir. E deixaste-me de rastos. Cada convite teu para viver a tua vida é um convite que aperta no peito. Tu agora és eu. E eu agora sou tu. O gato. A manhosa farsa que me atacou. E se não chorei foi porque não quis. Mas sou feliz por ti. Sou feliz porque tenho a brisa que me acalma. Não somos inocentes. Os maus sentimentos também nos atravessam o espírito. Digo ao pé para avançar. Ordeno-o.