Sempre fui um bom ouvinte. Tem dias que estou sem cabeça e mesmo assim ouço. As pessoas precisam de falar, mesmo aquilo que sabem que ninguém quer ouvir. Também sou um bom falador, não nego, mas com o tempo fui levado a medir mais as palavras. Diziam que eu era sincero demais ao ponto de ser incomodativo e por vezes grosseiro. Sim, posso dizer que cheguei a ser mesmo muito grosseiro. Não pensava na diferença entre dizer uma verdade e um magoar. Achava que os outros quando me pediam opiniões queriam a minha sinceridade. E eu cheguei a ser cruelmente sincero (as vezes ainda sou, para aqueles que mais amo, não me perguntem porquê). E nas voltas da vida dei por mim, muitas vezes, calado. Queria dizer o que achava e acabava por pensar: “É melhor não, pensa bem antes de falares”. E de tanto racionalizar as minhas palavras fui perdendo a capacidade de dizer o que realmente pensava. Cheguei mesmo a ter momentos em que queria falar e a voz simplesmente não saia, travava, engolia em seco e acabava por odiar-me por dentro. Odiava-me por pensar que em tempos teria dito sem qualquer hesitação. Passei por um período do oito ao oitenta.
Hoje em dia já não sinto ódio, voltei a conseguir falar de forma mais fluida mas com uma maior consciência natural. Acima de tudo aprendi a não me enganar a mim mesmo. A verdade de um pensamento começa quando não o aldrabamos para nós mesmos. Mas a verdade, inevitavelmente, magoa. E nós somos os primeiros a ser atingidos por ela. E, em segundo plano, somos atingidos ao ser verdadeiros com o próximo
(As pessoas precisam de falar, mesmo aquilo que sabem que ninguém quer ouvir), porque queremos dizer o que pensamos, o que sentimos e ao mesmo tempo temos medo. Medo das suas reacções, medo de os magoar, medo de nos magoar. Quantas vezes já não pensei e não passei pela velha crise de: “Eles não entendem o que quero dizer, não me percebem, deturpam o que eu sinto ao olhos do que eles sentem.” E aprendi que nada podemos fazer contra isso. Porque a forma como vemos as coisas far-nos-á sempre mais sentido. Sentido, porque é como sentimos. Sentido, porque é como aprendemos a experienciar. Sentido, porque são os nossos olhos agarrados à nossa consciência.
Apercebi-me, por ouvir várias pessoas, de diferentes idades, diferentes géneros e diferentes estares na vida, que existe uma global tristeza do não entendimento. Cada vez mais tem-se medo de ser. Cada vez mais tem-se medo de sentir. Cada vez mais tem-se medo de errar. E quando se erra as pessoas conseguem ser muito cruéis umas para as outras. Se eu contasse os desabafos que tenho ouvido de pessoas que nunca ninguém imaginou sentirem-se assim, perceber-se-ia o estado grave da situação. As cabeças cheias de regras, de sonhos americanos, de filmes românticos, nem param para pensar no que realmente sentem. Simplesmente desejam viver aquelas histórias, desejam alcançar aquilo que lhes é vendido como o perfeito, o que trará a felicidade. Mas quando efectivamente param para pensar no que realmente sentem... assustam-se. E começam as depressões, as idas ao psicólogo, os maus humores, as caras deixam de sorrir, os corações deixam de brilhar e pensam: “Se ao menos eu conseguísse viver um pouco daquelas histórias...” e entram no processo de loucura de manicómio. E quando se olha à volta estão todos doidos em busca de uma mesma coisa que não existe... e que, quando existe é por breves instantes, como nicotina injectada, como uma droga de efeito rápido. E as pessoas sentem que tiveram um pouco daquilo e querem mais. E ao invés de serem felizes numa equação (mais ou menos) constante, deixam-se cair na infelicidade pontuada por momentos em que se drogam um pouco mais dessa felicidade relâmpago.
Depois de ler os livros do Saramago, referentes aos caóticos mundos cegos, lúcidos e eternos, tentei imaginar um mundo onde só fosse possível agir-se sendo realmente verdadeiro consigo mesmo. E esse mundo virou caótico também pela não capacidade que o Homem tem de aceitar e conviver com aquilo que lhe é diferente. E eu não sou excepção. Muitas vezes não consigo aceitar certas coisas. E quando digo que não consigo aceitar, digo mesmo no sentido de não conseguir tolerar, de me dar raiva, de me meter nojo. (Existem casos e casos. Não estou aqui a falar que seja aceitável um Homem matar outro Homem, um homem maltratar uma mulher, alguém que bate noutra pessoa por puro prazer, disso devíamos todos ter nojo, mas não falo dessas coisas, esse seria um outro assunto, um outro texto). Todos acabamos por ser, mesmo que em pequenas coisas, preconceituosos, racistas, xenófobos. Mas como podemos amar e aceitar o próximo sem que nos amemos e aceitemos a nós? E como fica perceptível, tudo não passa de uma gigante bola de neve, um ciclo vicioso. Pergunto-me quando virá o dia em que saberemos conviver com a ideia de que a nossa verdade nem sempre é a verdade do outro, que o nosso certo e errado não é o certo e o errado do outro, que podemos conviver com isso, lidar com isso, encarar isso. É claro que vão dizer que sim, que sabem conviver com essas diferenças se não estariam sozinhos. Mas é fácil conviver com as “pequenas diferenças” das pessoas que nos fazemos rodear. O difícil é conviver com “as grandes diferenças” daqueles que cruzam por nós no dia-a-dia. E é natural que nos afastemos daqueles que pouco têm a ver connosco. Mas uma coisa é não conviver no nosso circulo pessoal, outra coisa é desprezar, odiar, ridicularizar tudo aquilo que soa a diferente demais do que é a nossa linha de pensamento. E aí sim, e sem que nos apercebamos, vamos estar a ser cruéis, vamos pôr muitas cabeças em duvida daquilo que sentem, porque nem toda a gente tem força para manter um credo, para afirmar-se. E acabam por se calar, por guardar para si medos, duvidas, rancores à vida, inseguranças até que explodem. Se ao menos elas pudessem expressar aquilo que sentem...
O que escrevi deixa-me a pensar que tenho de começar a olhar mais pelos outros, que tenho ainda muito trabalho a fazer em mim, na minha cabeça, na minha forma de pensar e de ver as coisas e que ainda tenho muito que aprender. Olho para cima e vejo que topo da montanha está alto, mas se nunca começar a subir ele estará sempre alto e eu no mesmo lugar.
*
Vou repassar a aqui a letra do Hey You. Acho que se queremos mudar o mundo, pensando nas questões ambientais, como foi o propósito do Live Earth, das questões da Guerra, como foi o Live Eight, das questões da pobreza, como foi o Live Aid, temos de começar mesmo por mudar a forma como nos olhamos e olhamos o próximo (o melhor ensinamento que aprendi nos meus tempos de igreja, e que me dei mal na vida sempre que o desrespeitei). A letra do Hey you é realmente impressionante por toda a sua mensagem, por ser mais do que uma simples letra a dizer “vamos salvar o planeta”.
“Hey you, don't you give up, it's not so bad, there's still a chance for us. Hey you, just be yourself, don't be so shy, there's reasons why it's hard. Keep it together, you'll make it alright. Our celebration is going on tonight. Poets and prophets will envy what we do. This could be good, hey you! Hey you, open your heart, it's not so strange, you've got to change this time. Hey you, remember this, none of it's real including the way you feel. Keep it together, we'll make it alright. Our celebration is going on tonight. Poets and prophets will envy what we do this could be good, hey you. Save your soul, little sister. Save your soul, little brother. Hey you, save yourself, don't rely on anyone else. First love yourself, then you can love someone else. If you can change someone else, then you have saved someone else. But you must first love yourself, then you can love someone else. If you can change someone else, then you have saved someone else. Hey you, there on the fence, you've got a choice one day it will make sense. Hey you, first love yourself, or if you can't, try to love someone else. But you must first love yourself, then you can love someone else”
Madonna, Hey You, Live Earth