DENTRO DE UM MUSICAL

Tentava dormir. Provavelmente havia dormido demasiado no decorrer do fim-de-semana. Fechava e abria os olhos a uma cadência ritmada. O barulho da ventoinha continuava constante e a luz que entrava pela pequena janela era a mesma de sempre.

Ainda novo, apaixonara-se por musicais e, gradualmente, eles foram tomando a sua vida, a sua rotina, a sua cabeça. As músicas começaram a consumir-lhe a alma. Mas, naquela noite, nenhuma música lhe ocorria. O seu cérebro não conseguia fixar-se em nenhum álbum, compositor, artista ou música que fosse. E tantas eram as que preenchiam e tinham preenchido a sua vida, imaginando-se a viver dentro de um espectáculo musical. Ele era o actor, ele expressava-se a cantar e a dançar. Esta era a visão que alguém teria se conseguisse ver o mundo pelos seus olhos.

Mas nenhuma música lhe ocorreu naquela noite. O actor ficou à espera que a orquestra tocasse para que ele pudesse começar a cantar. A orquestra ficou à espera que o maestro entregasse as pautas. O maestro ficou à espera que o compositor escrevesse as canções. E o compositor ficou à espera de alguma ideia ou inspiração...

O que estaria a mudar na sua cabeça? Estaria assim tão diferente? Conseguiria no dia seguinte olhar para o mundo e ver tudo a cantar e a dançar? O que teria acontecido? O que estaria a acontecer? Mais uma vez fechou e abriu os olhos... e nada! A sua cabeça estava numa confusão de notas à espera de um lugar na pauta. Foi então que se apercebeu de que não era a música que tinha ido embora. Simplesmente as notas estavam a precisar de uma nova posição, mudar acordes, escalas, sustenidos e bemóis, novos arranjos, novas melodias. E uma música começou a fazer-se ouvir na sua cabeça. De novo a vida!

INVENTÁRIO MARÍTIMO por J.P. SIMÕES

“Os vermes, os gatos, os carros, os prédios, a espera, os pátios, os jogos, as lutas, os brutos, as pátrias, as sombras, os vultos, os estranhos, os mártires, os dias, as horas, as praças, os copos, os olhos, a íris, os beijos, a casa, a noite e os cacos, poemas e factos, os fados sem tema, o tempo quebrado, a dor, o dilema, no fundo do mar, no fundo do mar...

Ai, Lisboa, Lisboa, Lisboa! Lisboa no fundo do mar. Um dia, quem sabe, se homens se aves, alguém virá para te encontrar! Ruas abertas, desertas, cobertas por sombras azuis e corais. Num silêncio terno, eterno, imenso de fachadas desiguais. De náufragos dias, saudades de pedra... Quem te vir assim, esquecida no mar, irá procurar-te a vida. E se então sonhar... um tempo de amor... talvez pense em nós querida.”

É IMPORTANTE IMPORTAR

Importa aos outros que não importe importar. Pois o que não importa é mais fácil de digerir. Seguir em frente sem preocupações, receios ou medos. O que não importa, não interessa. O que importa causa perca de tempo. E importa que não se perca tempo. Logo, importa que não seja importante, para que nem chegue a importar. Mas é importante lembrar. Pois o tempo que passou importa ao tempo que não passou. E é importante não esquecer. Mas, em contradição, esquecer também dá trabalho, e não temos tempo para nos importarmos com isso. E, assim, não esquecemos e julgamos não nos importar. Mas importa que não se esqueça com a importância que lhe é devida. E, mais do que imaginamos, importa que sejamos importantes para alguém. Importa que se importem connosco. Importa que nos importemos com os outros. Importa que façamos de alguém importante. E se importar é importante, importemo-nos com aquilo que julgamos não ter importância e deixemos de lado as importâncias que não importam.

PALAVRAS II

“As palavras são aquilo que nos mata”, pensou. “Nunca ninguém entenderá porque as proferimos ou porque as escrevemos. Nunca ninguém as lerá da forma que queremos. As palavras são viajantes. Olha-se para elas e nunca se sabe ao certo de onde surgem ou para onde vão. Ninguém as vê como simplesmente palavras. Tentam descodificar o que não tem código. Ninguém as entende no seu estado puro, ninguém as reconhece. São sombras passageiras a precisar de um lugar. Mas elas vivem bem sem esse lugar...

As palavras são como as pessoas. Por mais que as ouçamos, nunca vamos perceber a verdadeira questão. Pois ninguém sabe exprimir aquilo que realmente quer dizer. O sentimento passa para lá da verbalização. Sente-se com todos os sentidos. É preciso cheirar, saborear, ver, ouvir, tocar...

As palavras são como o silêncio. Não falam. Perturbam. Desassossegam as mentes mais pacíficas. E quando se descobre que as palavras são apenas palavras... o que resta?” Deixou-se a olhar para um velho livro de escritos seus. De que serviriam todas aquelas palavras escritas a caneta esferográfica preta? Quem as fosse ler iria sempre buscar aquilo que não estava lá.

DIÁLOGOS – JANTAR PARA UM

- Só agora?
- Devia ter chegado mais cedo?
- Não. Eu é que estava aqui sozinho e o tempo pareceu-me mais demorado que o normal.
- Estava um transito dos diabos. Fiquei parado horas num cruzamento. Só me apetece gritar! Não imaginas o quanto. Mas não vale o esforço. Dói-me a garganta. Tenho de deixar de fumar. Esta merda está a consumir-me os pulmões. Temos alguma coisa para comer? Estou a morrer de fome... hoje o almoço estava uma merda – acende um cigarro.
- Não ias deixar de fumar.
- Ia, não disse que vou? Mas ainda não é o momento certo. Estou demasiado stressado. Afinal temos alguma para comer ou não?
- Vê no frigorífico.
- Isso quer dizer que não fizeste nada para comer?
- Não estava com vontade. Era suposto fazer alguma coisa para comer?
- Não! Não era.
- O que se passa?
- Não se passa nada. Nada mesmo. Mas porque é que não fizeste nada? Estou a morrer de fome. Passo o dia a trabalhar e o que me dão é um almoço que não serve nem para a cova do dente.
- Não sou teu criado.
- Eu não disse que eras.
- Subentendeste.
- Mas queres discutir?
- Não estou para aí virado... dá-me um dos teus cigarros.

Sentam-se em frente ao sofá a assistir televisão. O volume está quase no mínimo e o silêncio entre eles é mortal. Só resta dizer que no dia seguinte já não estavam juntos. Cada um em sua casa fazia jantar para um com medidas para dois. É o hábito!

“TRICK”

Respirava lentamente nas horas que por si passavam. O fim-de-semana havia-lhe proporcionado um espaço de total leveza: o sol que banhava as águas do mangue que cruzavam com as do mar; o vento em tom de espera para ir refrescando o corpo de tempos em tempos; a areia dourada; a paz mortal dos pensamentos. Mas tudo isso eram, agora, memórias. De regresso ao seu quarto, por onde um furacão havia passado, deitou-se na cama com o olhar fixo no teto. O céu estrelado já lá não estava, não como na noite anterior onde constelações e cometas puderam ser avistadas. E, no seu coração, recordações palpitavam de tempos passados, de lembranças que lhe torciam o coração. Uma melodia acompanhava-lhe os pensamentos: A noite do seu aniversário, há oito meses atrás, o dia em que assistira ao mesmo filme que vira naquela noite... E não conseguiu ficar indiferente às memorias que consigo vinham agarradas. E efeito devastador do amor, das palavras, dos olhares... da dureza das expressões e das emoções trocadas. E bastava esperar só vinte minutos e... parabéns! Tudo teria sido mais que perfeito.

“Gabriel sits near Mark. Finally they are alone. Gabriel says:
- Tonight's been a mess.
- Yeah…
- But, you know, some of the mess... I mean… I did have a good time tonight... Even though, you got to admit it was really a mess.
- You know, I would've invited you back to my place, but…
- Aw, it's all right. Don't worry about it.
- No. I would have, but... the lady I told you about...
- Yeah?!
- She's my mother. I live at home.
Gabriel pays the fries and get up:
- I have to pee.
- Me, too.
They go to the bathroom. And during the pee Mark says:
- We're alone.
- Yeah, finally!
Mark starts to sing the song that Gabriel wrote to his musical play:
Enter you. Voilà it’s showtime. I hear the music of a…
They sing together:
- …dance and a dum-diddy…
- Enter you – Mark sing.
- You're singing it wrong.
- What?
- Don't sing it.
- It's a good song.
- Shut up.
- Well, it is.
- You're being polite. Shut up. – Pause – You really think so?
- Yeah. It's really good. Enter you… That's all I know. You have to teach me the rest.
- I need a piano.
- We've already established that.
They touch each other and almost kiss when Mark start to talk again:
- You know, I think it's good how this turned out.
- You do?
- Yeah. We got the hard part over with.
- Oh, what about the sex?
- What kind of a girl do you think I am?

They walk in the streets of New York. They stop in a corner and Mark kisses Gabriel in his mouth. They go near a subway station and Mark writes his phone number in Gabriel’s hand. They say goodbye. Gabriel goes to a public telephone and disc the numbers. We can ear the answering machine:

- Hey, this is Mark. You got me. Leave a message.

Gabriel smiles and start walking singing:

Enter you. Voilà, it's showtime. You brought the house down with a dance and a dum-diddy. Enter you in less than no time. This ugly drama has become pretty. Up went the curtain. My lines felt wrong. Intermission seemed so far away. Applause uncertain. The scenes too long. Life was like an uninspiring play, but now you're here, we meet stage center. I thought my story line was through then from the blue… Enter you!”

CRÓNICAS DE UM PORTUGUÊS

Ao cruzar o oceano deparo-me com um novo mundo, um novo olhar sobre os modos, a cultura e a arte. E, apesar da mesma língua, tudo parece distante, apartado da minha própria cultura. Europeu, aqui, me chamam. Mas mais não sou que um habitante da cauda da Europa. E esta é agora a minha nova vida. Tento apreciar o que me rodeia, não ficando contente com o vejo. Fico pasmado com a massificada construção de torres que almejam tocar o céu, com a abdicação da perfeição para alcançar a quantidade... e a história? Onde fica, para onde foi? As vossas memórias não são mais do que um álbum de retratos antigo, a preto e branco, a escamar nas pontas. É urgente a intervenção na narrativa dos antepassados. Abdicar do novo design para restaurar o velho, arranjá-lo, redesenhá-lo, reinventá-lo. E a tudo isto chamo criação, invenção, inovação. Nós somos feitos de história e um dia desejaremos que ela não seja esquecida.

THE SHOW MUST GO ON

Tudo pelo qual tinha vivido estava agora a acontecer do outro lado do oceano. E estava a acontecer sem ele. Sentado em frente ao computador apenas poderia acompanhar o espectáculo em escassas imagens, e isso, destruía-lhe o coração. E o problema não era que estivesse a acontecer sem si ou consigo. Simplesmente ele não estava envolvido no projecto para o qual tinha dedicado parte da sua vida. E mal sabiam as pessoas dessa importância.

Já tinha concluído à algum tempo que nascera fora de época. Nascera tarde demais. Tarde demais e com a voz cansada e obstruída. O seu universo estava adiantado dez anos. E nunca sentira tanto isso como agora. O seu amor, os seus sonhos, os seus pensamentos tinham mais dez anos do que a sua idade. Mas o espectáculo tinha de continuar. E tornar-se-ia mais uma mera memória que não chegaria a viver. Mas estava certo que um dia haveria de se encontrar. Um dia encontraria o ponto perfeito, o quanto baste para a sua vida não ficar nem insossa nem salgada. E era para aí que caminhava. Para o dia em que levaria o dedo à boca e sentiria o sabor perfeito. E assim deixou o espectáculo continuar, no palco e na sua vida. “No day but today”.

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O CICLO DA FRUTA

Nada para além disto... nada para além do nada! De que servem os ensejos fugazes do indisciplinado sentido do ser? As horas gastas na solidão das palavras, dos medos, dos unicórnios brancos que nunca chegaram a aparecer. Soltou-se a podre fruta que amadureceu demais para aquela árvore. A sua casca estava epidémica nas doenças das horas que passam. E o nada não deixou de ser o nada para além do tudo. Pois tudo o envolvia e nada lhe restava. Nem a frieza fazia parte de si ou o calor dos instantes em que julgava ser aquilo que não era. E tudo era apartado, transviado, logrado. E o tudo era o nada que morria aos poucos. Jazia sozinho no chão... a alma, o corpo, o sangue. Mas estava vivo. Disso tinha a certeza. Estava capaz de tocar-se a si mesmo e sentir consistência. Sentir a dureza. Sentir-se. Mas não sentia o que o rodeava. Tudo não passavam de imagens a preto e branco. E tudo era o nada. O engodo. O chamariz para o que não existia. Contudo, ele sabia existir-se, sabia ser, sabia que sabia, e sabia que não sabia saber. Já no chão a fruta em decomposição. O regresso às raízes. O regresso ao seu centro exposto a nu, Ao seu centro que daria nova vida, novo fruto. E deixou o tempo passar. E deixou o tempo actuar. E deixou-se estar na esperança de que tudo desse certo.

MINOTAURO

Resta-se a cidade ao labirinto de prédios, carros, pessoas e ruídos ensurdecedores. E no centro o monstro. Cavernoso corpo, corpo de homem, cabeça de animal, enfurecido em fumos densos, pestilentos, fragilizado pelos Homens, privado da doença de amar. E quem... alguém que o acolha... ninguém! Só lhe resta a traição da morte. A punhalada traseira que fere os pulmões e o ar sôfrego evapora-se para o vento, para o nada, para longe do que um dia foi... corpo de homem, cabeça de animal... e amou sem saber que o fazia. Ninguém lhe explicou. Ninguém se interessou pela besta, pelo disforme. Desprezado no centro do labirinto, sozinho, a rondar os caminhos sem saída. Se ao menos lhe tivessem mostrado o amor... se ao menos lhe tivessem dado a oportunidade de existir sem ser um monstro. Se ao menos tivessem-no deixado existir como Homem, como alma bondosa, como coração apaixonado. E de três em três anos sete rapazes e sete raparigas serviram de sua refeição e essa foi a sua aprendizagem. E no final, o seu criador, o seu alimento, matou-o. No centro do labirinto, jaz morto, aquele que nunca teve intenções de ser o que era. Um monstro. Uma aberração.