UMA CASA QUE SE COMEÇA A APAGAR

A personagem não podia morrer e o escritor também não. Era preciso que continuasse a acreditar em si. Acreditar, a agora mais do que nunca, naquilo que era. Estava cansado, mas a primeira etapa da sua viagem estava prestes a terminar, mais uns dias e estaria de volta à sua terra natal. A contagem decrescente havia começado. Restavam-lhe seis dias para que se despedisse daquela paisagem, da varanda do seu apartamento. Quando voltasse era preciso encontrar outra morada, outro espaço, outra casa e naquela permaneciam tantas memórias. As paredes casca-de-ovo tinham tanto para contar e ali permaneciam, em silêncio, a olhar para a sua figura em frente ao computador, a tentar comunicar com o outro lado do oceano, esse que fazia toda a diferença.

Nas colunas acompanhava-o Regina Spektor com o seu piano e a sua genialidade. Era nela que se sentia vivo. Era ela quem cantava a sua vida, as suas histórias, as suas memórias. E ele acompanhava-a com a sua voz trémula, cansada, tabagista, rouca... esperando pelo tempo que o levaria de volta à sua ex-realidade, à sua ex-vida, à sua ex-morada. Olhou à sua volta e havia tanto para empacotar, para guardar, para levar, para limpar, para deixar tal como foi visto no primeiro dia. Era essa a crueldade... apagar qualquer vestígio da sua passagem por ali e recomeçar tudo noutro lado. A casa podia ficar vazia de si, mas poderia ele apagar de si aquela casa?

Sem comentários: