BLEIBE, RESTE, STAY

Como poderiam as pessoas alguma vez perceber? Estavam demasiado embrenhadas nas suas próprias vidas, nos seus próprios conceitos, nas suas próprias experiências, nos seus próprios sentires. Mas não se retirava de todo desse panorama, pois também ele carecia do mesmo problema. Contudo, vivia na pele as mais terríveis chagas e mazelas. E isso ninguém lhe podia retirar pois as marcas eram visíveis. Podiam simplesmente tapar os olhos, vedar-se ao que viam, sentiam, percepcionavam, achar subterfúgios para toldar os olhos e a mente mas nunca podiam fugir ao que era real. E ele sabia disso, que não valia a pena esconder-se mais atrás do pano, atrás das mascaras, atrás das imaginações. Isso não era viver, era morrer aos poucos para um dia acordar e pensar – qual o sentido de tudo isto?

E, finalmente, escolheu a verdade. Mas a verdade destruiu o seu mundo. A verdade trouxe desilusões, ódios, finais infelizes, hipocrisias, lamentos, despedidas e o que ficou? Ficou ele, sozinho, habitando uma casa vazia. E tudo isso alterou-lhe, em muito, todos os conceitos de vida, de amor, de amizade. Ficou a pensar em como seria o virar da página, o iniciar de uma escrita numa folha em branco, sem parágrafos antecedentes a não ser o da sua própria desilusão, pois iludido não estava mais.

Fica – mas isso não lhe era permitido pedir!

1 comentário:

Anónimo disse...

Poema em Linha Reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

F. Pessoa