ELE: Entrei pela sala do teatro, as cortinas vermelhas fechavam o palco, sentei-me na primeira fila a pedido do encenador e fui tentando apreciar cada momento. “Todos temos a mesma história”? Desde quando? Não desde a queda do meu primeiro molar. Não desde a morte do pai d’Ela. Não desde nunca. A história de cada um é o seu lugar sagrado. Um santuário repleto de imagens únicas e irrepetíveis. Imagens como o dente na mão do dentista agarrado a uma bola de pus. Este é o meu mundo e a minha história desde 9 de Junho. O dia em que tirei o primeiro molar.
*
ELA: Durante a tarde um suspiro reconfortante encobre-me a alma. Desejo que uma lágrima se arraste pelo meu rosto até embater no chão. E se sonho algum ousar enfadar-me a escuridão confesso-me ao diabo. Já não são horas de consolações humildes pois o meu pai morreu e o meu nome aparece listado nos pêsames do universo que me rodeia – são como letras flutuantes em muitas cabeças que se reúnem para tomar chá.
Suspiros vão e vêem sem significado aparente aos olhos descartados da visão. Incontroláveis são as memórias de um passado recente acorrentado em mim. Ainda nem senti a necessidade de expressar qualquer agressividade. Vejo a clareza nas formas e nos sentidos mais latos das coisas.
Digitei, em segredo, alguns números no telefone para amigos íntimos. Deixei na voz um rasto de melancolia saudável.
*
ELE: Como pude? Quando Ela me ligou desatei a chorar. Quando gostamos das pessoas sentimos a tristeza com elas… e eu não consegui evitar. Ela não chorou. Havia chorado antes, mas do outro lado do telefone nem uma lágrima brotou. Apenas a sua voz em tom pianíssimo, magoado, mutilado, sereno e sem uma pinga de água salgada.
Como pude? A alegria de voltar a falar com ela e a tristeza das suas palavras. Esta é a minha penitência: dez chicoteadas de arame farpado e um coração entregue ao covil dos leões.
*
ELE: Preciso desesperadamente de alguém para falar. Tantas coisas que me passam pela cabeça, tantos mundos perdidos, entrelaçados nos escombros do meu pensamento, sem âncora, sem porto, sem destino, sem ti. Fala comigo. Que a noite já vai longa. Fala, não te inibas desse grandioso dom que todos, ou quase todos, tivemos a sorte de receber. As palavras nunca estarão gastas. Nunca!
*
ELA: O fim de tarde no bairro estava calma. Duas ou três crianças brincavam no pátio. Eram o centro das atenções dos velhos que docemente os viam das suas varandas. Quem disse que eram felizes? Falo dos velhos, não das crianças. As crianças são sempre felizes.
Os velhos tentam desesperadamente imaginar-se com aquelas idades puras. E quantos anos já lá vão para que as recordações ressuscitem dos mortos. Muitos anos ficaram entre os sonhos e os fados. E depois do primeiro molar muitos se seguiram. E no entanto as crianças não param de brincar.
*
ELA: Morreu sem que lhe caísse o primeiro molar. A sua dentição era perfeita.
*
ELA: Como todos nós, o meu pai também já foi criança. Do álbum de família retirei uma fotografia da infância do meu pai. A preto e branco, como eram as fotografia na altura. Um pouco corroída nos cantos.
Era um rapaz muito bonito. Os seus olhos saltavam radiantes de uma esperança inocente, alheia a preconceitos que mais tarde se introduziriam na sua visão do mundo, o cabelo curto, a máquina dois, dava-lhe o ar da sua graça e a sua boca ligeiramente subida no canto desmascaravam a sua traquinice. A boca de dentes perfeitos que me beijava com amor e que hoje é apenas uma recordação.
*
ELE: O meu hálito está fora do prazo. Logo hoje que o pai d’Ela morreu. Logo hoje que preciso de falar. E nada me tira da boca o sabor a ferro e a sensação viscosa de um dente arrancado. Se tudo fosse tão fácil como aguentar este sabor a vida estava feita e todos teríamos vinte na cadeira. Uma vida é tão passageira como este sabor e é por isso que se torna irresistível saboreá-lo e voltar a saborear. Não queremos perder uma pitada do seu gosto sabendo que por vezes nos fartamos e desejamos nunca o sentir outra vez.
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ELA: Durante a tarde um suspiro reconfortante encobre-me a alma. Desejo que uma lágrima se arraste pelo meu rosto até embater no chão. E se sonho algum ousar enfadar-me a escuridão confesso-me ao diabo. Já não são horas de consolações humildes pois o meu pai morreu e o meu nome aparece listado nos pêsames do universo que me rodeia – são como letras flutuantes em muitas cabeças que se reúnem para tomar chá.
Suspiros vão e vêem sem significado aparente aos olhos descartados da visão. Incontroláveis são as memórias de um passado recente acorrentado em mim. Ainda nem senti a necessidade de expressar qualquer agressividade. Vejo a clareza nas formas e nos sentidos mais latos das coisas.
Digitei, em segredo, alguns números no telefone para amigos íntimos. Deixei na voz um rasto de melancolia saudável.
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ELE: Como pude? Quando Ela me ligou desatei a chorar. Quando gostamos das pessoas sentimos a tristeza com elas… e eu não consegui evitar. Ela não chorou. Havia chorado antes, mas do outro lado do telefone nem uma lágrima brotou. Apenas a sua voz em tom pianíssimo, magoado, mutilado, sereno e sem uma pinga de água salgada.
Como pude? A alegria de voltar a falar com ela e a tristeza das suas palavras. Esta é a minha penitência: dez chicoteadas de arame farpado e um coração entregue ao covil dos leões.
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ELE: Preciso desesperadamente de alguém para falar. Tantas coisas que me passam pela cabeça, tantos mundos perdidos, entrelaçados nos escombros do meu pensamento, sem âncora, sem porto, sem destino, sem ti. Fala comigo. Que a noite já vai longa. Fala, não te inibas desse grandioso dom que todos, ou quase todos, tivemos a sorte de receber. As palavras nunca estarão gastas. Nunca!
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ELA: O fim de tarde no bairro estava calma. Duas ou três crianças brincavam no pátio. Eram o centro das atenções dos velhos que docemente os viam das suas varandas. Quem disse que eram felizes? Falo dos velhos, não das crianças. As crianças são sempre felizes.
Os velhos tentam desesperadamente imaginar-se com aquelas idades puras. E quantos anos já lá vão para que as recordações ressuscitem dos mortos. Muitos anos ficaram entre os sonhos e os fados. E depois do primeiro molar muitos se seguiram. E no entanto as crianças não param de brincar.
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ELA: Morreu sem que lhe caísse o primeiro molar. A sua dentição era perfeita.
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ELA: Como todos nós, o meu pai também já foi criança. Do álbum de família retirei uma fotografia da infância do meu pai. A preto e branco, como eram as fotografia na altura. Um pouco corroída nos cantos.
Era um rapaz muito bonito. Os seus olhos saltavam radiantes de uma esperança inocente, alheia a preconceitos que mais tarde se introduziriam na sua visão do mundo, o cabelo curto, a máquina dois, dava-lhe o ar da sua graça e a sua boca ligeiramente subida no canto desmascaravam a sua traquinice. A boca de dentes perfeitos que me beijava com amor e que hoje é apenas uma recordação.
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ELE: O meu hálito está fora do prazo. Logo hoje que o pai d’Ela morreu. Logo hoje que preciso de falar. E nada me tira da boca o sabor a ferro e a sensação viscosa de um dente arrancado. Se tudo fosse tão fácil como aguentar este sabor a vida estava feita e todos teríamos vinte na cadeira. Uma vida é tão passageira como este sabor e é por isso que se torna irresistível saboreá-lo e voltar a saborear. Não queremos perder uma pitada do seu gosto sabendo que por vezes nos fartamos e desejamos nunca o sentir outra vez.
1 comentário:
Muito bom.
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