III. VIVER DO AMOR

Como teria sido se estivesse perto? A mesma monotonia, a mesma melancolia, a mesma apatia. As horas que passavam por passar. Os dias que seguiam por ser esse o seu destino. E nunca esteve tão certo para afirmar ter tomado a decisão correcta. Estava longe, mudou de lugar, mudou-se a si mesmo. Era esse o grande mote da sua vida. Mudar. Era como um camaleão. Talvez tudo isso se devesse à sua profissão em constante mutação, criação, transformação. Metamorfoses que galopavam umas atrás das outras. Não estava apto para se definir no ontem, no hoje, no amanhã. E este era ele!

Mas a grande contradição da sua vida estava no seu olhar. A luta entre o que desejava ver e o que via, o que desejava sentir e o que sentia, o que desejava viver e o que viva. E só os seus olhos se apercebiam de tudo isso. Só eles tinham a real percepção do mundo que o rodeava. Desejava ser capaz de sentir o mundo de outra forma, da forma que apregoava, mas acabava sempre por lhe dar um tom lírico. Não conseguia subverter os seus próprios padrões.

Chamaram-lhe romântico! Mas romântico como?, pensou. Se ele não sentia o amor como era suposto sentir, como poderiam chamar-lhe tal coisa se o romantismo vinha carregado de regras e conceitos pré-definidos? Tentou perceber tal calamidade. E a única referencia pela qual conseguiu fazer alguma relação foi na pintura romântica. A explosão de cor, sentimentos e fantasias. O sentir pela ponta do pincel a ira, a dor, a loucura, a paixão, a vibração da alma, a alegria, a tristeza, sentir pelo puro prazer de sentir. Sentir sem culpa. Esta seria a maior aproximação que encontrava com o romantismo. Mas seria em todas estas coisas que pensavam quando o chamavam romântico?

E mais um ano estava a terminar. A contagem decrescente havia começado. 10... Era preciso organizar todas as ideias 9... Tentar compreender o que se estava a passar consigo 8... Definir sentimentos 7... Passar a acreditar no “amor”? 6... Não! 5... Acreditar em si 4... Viver sempre mais 3... Ser feliz 2... oh meu deus... é agora 1... Feliz Ano Novo!

“P’ra se viver do amor. Há que esquecer o amor. Há que se amar, sem amar, sem prazer. E com despertador - como um funcionário. Há que penar no amor, p’ra se ganhar no amor. Há que apanhar e sangrar e suar como um trabalhador. Ai, o amor jamais foi um sonho. O amor, eu bem sei, Já provei e é um veneno medonho. É por isso que se há de entender que o amor não é um ócio. E compreender que o amor não é um vício. O amor é sacrifício. O amor é sacerdócio. Amar é iluminar a dor - como um missionário”

From: Chico Buarque - A Ópera do Malandro

II. AMOR CORRECTO

Segue então a sua caminhada para a descoberta do que era o amor de que todos falavam. E a verdade é que ninguém o deixou experienciar o amor por forma a que ele lhe atribuísse essa palavra. O amor já estava repleto de significados, signos e significantes. Já era um sentimento formado. Algo que teria de se obrigar a sentir. E percorria os olhos em leituras ávidas, leituras cautelosamente estudadas, sugando toda e qualquer infirmação que lhe permitisse entender o que teria de sentir.

O problema foi quando se apercebeu que não conseguia expressar-se segundo aqueles modos românticos, poéticos, idílicos, “patéticos”. Sabia sentir os outros de uma forma fugaz, alterada, engelhada, capaz de fazê-lo chorar noites e dias, cometer loucuras e destruir-se aos pedaços pelos cantos da casa. Mas não se sentia apto para corresponder às regras e planos estipulados. E começou a achar patético o “amor”, assistir ao sofrimento dos outros pela não concretização da história do príncipe e da princesa. Por não os arrancarem do sono com um beijo carregado de um testamento de ...e viveram felizes para sempre... e, em todos os lugares, o repugnante sentimentalismo das lágrimas nauseantemente mal amadas.

E quando estava com alguém sentia a necessidade de pedir desculpas por não corresponder ao pretendido, por não conseguir ser aquilo que todos esperavam que ele fosse. Aquilo que todos esperam que todos sejam. E muitas vezes sentia-se culpado por não conseguir amar “correctamente”. Amava à sua maneira. Amava porque sentia. Amava porque estava vivo. Amava porque encontrou o seu significado para essa palavra. Porque sentiu algo a que resolveu apelidar de amor.

I. A LÍNGUA

Aborreciam-lhe os dogmas do amor, a esquadria perfeita a ser alcançada, as regras que se haviam infiltrado nas cabeças de todos. As histórias contadas quando ainda nem sabia o que eram palavras. E na cama tudo acabava com um final feliz, longe de imperfeições, longe da realidade. E todos os que o rodeavam aprenderam a amar segundo as regras dos grandes clássicos, dos filmes românticos, das músicas de amor. E os mandamentos foram escritos. As regras foram ditadas. Longe ficaram todas as possibilidades de uma experiência que fugisse aos regulamentos. Toda e qualquer outra forma de dizer amo-te sem o dizer. Os gestos estavam estudados, as palavras ensaiadas, era só esperar pelo momento certo para o fazer , dizer e ser feliz.

E a sua cabeça ainda infantil, adolescente, criava encenações perfeitas para o grande momento. Beijava o antebraço para que ninguém soubesse tratar-se do primeiro beijo. Actuava com as paredes para não se engasgar. Olhava-se ao espelho para tomar consciência da sua figura patética, desleixada, gorda. Nunca iria conseguir encarar tal momento. Se é que tal momento fosse algum dia acontecer.

E numa manhã chuvosa, apercebeu-se que o momento estava a chegar. Era agora! Nada podia falhar! O papel estava decorado, os passos milimetricamente ensaiados, a perca da vergonha em relação ao seu corpo... mas onde estava o romantismo, a luz das velas, os violinos? A casa estava silenciosa, a luz estava mais intensa do que nunca, a sua barriga tremia por todos os lados, nada acontecera como planeado... e uma língua entrou na sua boca! (O seu antebraço não tinha língua!)

NATAL NATAL

Os meses passavam e as formiguinhas continuavam atarefadas de um lado para o outro. Lá fora, o sol continuava abrasador apesar de já ser Natal. E onde estava o frio, os aquecedores, as lareiras, as árvores de natal, a neve, os enfeites, o espírito, a família? Tudo tinha ficado do outro lado do oceano. Ele mal sentia que era Natal. O dia aproximava-se e tudo continuava normal. As pessoas andavam à mesma cadência na rua, o transito continuava normal, as praias sempre cheias de gente, e nada de avistar o senhor barbudo. Podia até dizer que sentia falta da forma excessiva como se vivia o Natal na sua terra. Pelo menos vivia-se.

Sentia falta de ouvir as músicas de Natal. Da algazarra nas ruas. Da chuva. Do frio. Das avenidas enfeitadas. Das luzes. Da cor. Da magia natalícia. E só conseguiu dar valor ao Natal quando se perdeu dele.

UM FELIZ NATAL A TODOS

POSTAGEM SILENCIOSA

À sua volta, o barulho. Em si, o silêncio... Maior é a dor que não se ouve...

A TODOS OS MOMENTOS, A TODAS AS MEMORIAS

Ser feliz é uma condição que nem a todos pertence. Gostar de viver, de apreciar a vida, de acabar tudo com um sorriso na cara, até quando se acabar a própria vida. Ser vida e dá-la aos outros é amor. Mas nem sempre um amor compreendido. É um amor de energia, não de palavras. E a energia fica connosco, convosco para sempre. Fica porque está no ar, fica porque existe memória. Fica porque é um pensamento feliz. E por isso não podemos ficar no mesmo lugar para sempre. Viajamos para receber e dar mais energia. Para que quando voltarmos sejamos ainda mais felizes. E quando se dá o reencontro é explosão. E só aí percebemos porque existimos. A todos os Pedros, a todos os felizes por natureza, a todos os que morrem com um sorriso na cara, aos companheiros da Vida, ao Adão e a ti.

*Para a Dora, de um dos Pedros da tua vida.

ALMA LUSITANA

Ao olhar pela janela mirou a linha do horizonte e era como se estivesse a ver Portugal, esbatido, pequeno, no limiar da imaginação. Na televisão passava o noticiário português – as mesmas tretas de sempre contadas da mesma maneira. Já há algum tempo que não assistia à televisão portuguesa. Mas foi bom ouvir o sotaque, pois ele próprio começava a perder o dele. Saiam-lhe sons cantados, embalados no samba e novas expressões. Era notória a diferença aquando da sua chegada. Era difícil voltar a ouvir um brasileiro dizer, “Desculpa, não entendi”. E cada vez construía mais memórias para aumentar a sua saudade. A saudade daqueles que o acolhiam há três meses. O seu corpo, já enérgico desde a nascença, percebia agora que ainda mais energia tinha. Todo o calor e o samba despertavam nele novas vibrações. Tudo estava em constante mudança. Quem seria quando voltasse a pisar as terras distantes onde diz ter vivido?
Ao olhar a caixinha mágica, não pôde deixar de sentir a vagabunda tristeza lusitana:

“ Se queres ser o meu senhor
E teres-me sempre a teu lado
Não me fales só de amor
Fala-me também do fado
Que o fado que é meu castigo
Só nasceu p’ra me perder
O fado é tudo o que digo
Mais o que eu não sei dizer

Almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras
Na Mouraria canta um rufia, choram guitarras
Amor, ciúme, cinzas e lume, dor e pecado
Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado”

COMPLEXO TYLOR DURDEN

Acordas um dias, dás por ti e não és tu que estás lá. É outra pessoa. Outra pessoa viveu a tua vida por ti. E agora? Como voltas a encarar tudo? Todos olham para ti de outra forma, ou diria mesmo, já não é para ti que olham. Sentes-te um estranho no teu próprio corpo. Tocas na tua cara e a sensação é a mesma. Então o que está diferente? Porque olham para ti assim? Tentas reagir como sempre fizeste. E todos estranham que assim o faças. Esperam de ti outra coisa. Mas que coisa? Tu não sabes, tu não viveste o que eles julgam teres vivido. Viveste outras coisas, de outro jeito, de fora, por assim dizer.

Concentras-te para perceber o que mudou. Para perceberes o que andaste a fazer este tempo todo. Vasculhas as contas telefónicas e encontras chamadas que julgas não ter feito. No estrato do cartão encontras compras daquilo que não sabes. Abres a gaveta e vês fotos tuas por lugares que não conheces. E, quando dás por ti, criaste uma sociedade secreta, um clube, um clube de combate. Desces até à cave e encontras um mundo que não sabes ter criado. Todos te admiram por aquilo que não queres ser admirado. Porque terão os outros essa visão de ti? Pensas no que poderás ter feito. E no que poderás fazer para mudar tudo. E, sem saberes bem porque, tens a sensação de que nada vai mudar. Pois nada pode ser desfeito. Pensas então no que poderás mudar daqui para a frente. Caminhas pelos lugares por onde supostamente andaste e vais compondo o puzzle. Estás quase a entender o jogo. Estás quase a perceber a razão de tudo. E quando finalmente encontras a resposta ficas pasmo contigo mesmo. Efectivamente eras tu. Efectivamente fizeste o que fizeste. Quiseste ser aquilo que sempre sonhaste. Quiseste sentir aquilo que sempre te apeteceu. Quiseste viver aquilo que a tua vida não permitia. E tudo recomeça quando voltas à estaca zero. Mas há coisas que não podes mudar. Matas-te a ti mesmo e, no fundo, só matas uma parte de ti. Dás a mão à pessoa que amas e ficam ali à espera que a destruição comece. Tudo à tua volta começa a ruir. Os prédios explodem. A cidade arde. E ali ficam vocês, de mão dada, para entrarem na tua nova vida. Uma vida que não mais será igual à anterior. Explodiste com o teu apartamento, correste o mundo, criaste um ideal de vida, um ideal de morte. E apercebes-te que nunca deixaste de ser aquilo que sempre foste: Tyler Durden.

“Warning: If you are reading this then this warning is for you. Every word you read of this useless fine print is another second off your life. Don't you have other things to do? Is your life so empty that you honestly can't think of a better way to spend these moments? Or are you so impressed with authority that you give respect and credence to all that claim it? Do you read everything you're supposed to read? Do you think every thing you're supposed to think? Buy what you're told to want? Get out of your apartment. Meet a member of the opposite sex. Stop the excessive shopping and masturbation. Quit your job. Start a fight. Prove you're alive. If you don't claim your humanity you will become a statistic. You have been warned”

Tyler Durden in Fight club

O QUE ANTÓNIA NÃO QUERIA VER

Quando abriu a porta de novo, com a chave que encontrara nos pertences do seu falecido marido, não imaginou que o mundo atrás daquele pedaço de madeira fosse mudar a sua vida. Como poderia ela entender tais coisas? Que o seu marido havia sete anos que vivia uma vida dupla, uma vida da qual ela não fazia parte, uma vida onde era feliz! A dor na sua cabeça ficou mais aguda. Suportar a ideia de que o seu marido tinha uma amante era uma coisa... suportar a ideia de que o seu marido tinha um amante era outra. A expressão do amor tornava-se complicada. Ela julgava conhecer todos os cantos da cabeça do seu marido, os gostos, os desgostos, os prazeres, as paixões, as desilusões... e afinal era só metade. Metade do seu sorriso, metade do seu amor, metade do seu prazer.

Antónia acabou por se tornar uma hospede da casa do amante do seu marido. Era-lhe necessário compreender, entender, encontrar a verdade sobre a pessoa que amava há quinze anos. E foi feliz na descoberta desse outro mundo. De um outro modo de ver e olhar a vida e o amor. E quando se apercebeu estava apaixonada pelo amante do seu marido, pela única recordação que lhe restava. O desejo de sentir o que ele sentia... e então resolveu partir. Poderia ela acusar o amante de lhe ter roubado o marido? Poderia ela culpá-lo das vivencias que não teve? Poderia ela ama-lo por ter amado o seu marido incondicionalmente? Poderiam chorar juntos a morte de um amor? Sabia que um dia iria voltar. E o mundo do seu marido era agora o seu mundo. E, mesmo que ausente, a sua memória continuava presente naquele apartamento. Nas conversas, nos olhares, nos sorrisos, nas lágrimas. E dentro de si carregava uma nova vida...

DENTRO DE UM MUSICAL

Tentava dormir. Provavelmente havia dormido demasiado no decorrer do fim-de-semana. Fechava e abria os olhos a uma cadência ritmada. O barulho da ventoinha continuava constante e a luz que entrava pela pequena janela era a mesma de sempre.

Ainda novo, apaixonara-se por musicais e, gradualmente, eles foram tomando a sua vida, a sua rotina, a sua cabeça. As músicas começaram a consumir-lhe a alma. Mas, naquela noite, nenhuma música lhe ocorria. O seu cérebro não conseguia fixar-se em nenhum álbum, compositor, artista ou música que fosse. E tantas eram as que preenchiam e tinham preenchido a sua vida, imaginando-se a viver dentro de um espectáculo musical. Ele era o actor, ele expressava-se a cantar e a dançar. Esta era a visão que alguém teria se conseguisse ver o mundo pelos seus olhos.

Mas nenhuma música lhe ocorreu naquela noite. O actor ficou à espera que a orquestra tocasse para que ele pudesse começar a cantar. A orquestra ficou à espera que o maestro entregasse as pautas. O maestro ficou à espera que o compositor escrevesse as canções. E o compositor ficou à espera de alguma ideia ou inspiração...

O que estaria a mudar na sua cabeça? Estaria assim tão diferente? Conseguiria no dia seguinte olhar para o mundo e ver tudo a cantar e a dançar? O que teria acontecido? O que estaria a acontecer? Mais uma vez fechou e abriu os olhos... e nada! A sua cabeça estava numa confusão de notas à espera de um lugar na pauta. Foi então que se apercebeu de que não era a música que tinha ido embora. Simplesmente as notas estavam a precisar de uma nova posição, mudar acordes, escalas, sustenidos e bemóis, novos arranjos, novas melodias. E uma música começou a fazer-se ouvir na sua cabeça. De novo a vida!

INVENTÁRIO MARÍTIMO por J.P. SIMÕES

“Os vermes, os gatos, os carros, os prédios, a espera, os pátios, os jogos, as lutas, os brutos, as pátrias, as sombras, os vultos, os estranhos, os mártires, os dias, as horas, as praças, os copos, os olhos, a íris, os beijos, a casa, a noite e os cacos, poemas e factos, os fados sem tema, o tempo quebrado, a dor, o dilema, no fundo do mar, no fundo do mar...

Ai, Lisboa, Lisboa, Lisboa! Lisboa no fundo do mar. Um dia, quem sabe, se homens se aves, alguém virá para te encontrar! Ruas abertas, desertas, cobertas por sombras azuis e corais. Num silêncio terno, eterno, imenso de fachadas desiguais. De náufragos dias, saudades de pedra... Quem te vir assim, esquecida no mar, irá procurar-te a vida. E se então sonhar... um tempo de amor... talvez pense em nós querida.”

É IMPORTANTE IMPORTAR

Importa aos outros que não importe importar. Pois o que não importa é mais fácil de digerir. Seguir em frente sem preocupações, receios ou medos. O que não importa, não interessa. O que importa causa perca de tempo. E importa que não se perca tempo. Logo, importa que não seja importante, para que nem chegue a importar. Mas é importante lembrar. Pois o tempo que passou importa ao tempo que não passou. E é importante não esquecer. Mas, em contradição, esquecer também dá trabalho, e não temos tempo para nos importarmos com isso. E, assim, não esquecemos e julgamos não nos importar. Mas importa que não se esqueça com a importância que lhe é devida. E, mais do que imaginamos, importa que sejamos importantes para alguém. Importa que se importem connosco. Importa que nos importemos com os outros. Importa que façamos de alguém importante. E se importar é importante, importemo-nos com aquilo que julgamos não ter importância e deixemos de lado as importâncias que não importam.

PALAVRAS II

“As palavras são aquilo que nos mata”, pensou. “Nunca ninguém entenderá porque as proferimos ou porque as escrevemos. Nunca ninguém as lerá da forma que queremos. As palavras são viajantes. Olha-se para elas e nunca se sabe ao certo de onde surgem ou para onde vão. Ninguém as vê como simplesmente palavras. Tentam descodificar o que não tem código. Ninguém as entende no seu estado puro, ninguém as reconhece. São sombras passageiras a precisar de um lugar. Mas elas vivem bem sem esse lugar...

As palavras são como as pessoas. Por mais que as ouçamos, nunca vamos perceber a verdadeira questão. Pois ninguém sabe exprimir aquilo que realmente quer dizer. O sentimento passa para lá da verbalização. Sente-se com todos os sentidos. É preciso cheirar, saborear, ver, ouvir, tocar...

As palavras são como o silêncio. Não falam. Perturbam. Desassossegam as mentes mais pacíficas. E quando se descobre que as palavras são apenas palavras... o que resta?” Deixou-se a olhar para um velho livro de escritos seus. De que serviriam todas aquelas palavras escritas a caneta esferográfica preta? Quem as fosse ler iria sempre buscar aquilo que não estava lá.

DIÁLOGOS – JANTAR PARA UM

- Só agora?
- Devia ter chegado mais cedo?
- Não. Eu é que estava aqui sozinho e o tempo pareceu-me mais demorado que o normal.
- Estava um transito dos diabos. Fiquei parado horas num cruzamento. Só me apetece gritar! Não imaginas o quanto. Mas não vale o esforço. Dói-me a garganta. Tenho de deixar de fumar. Esta merda está a consumir-me os pulmões. Temos alguma coisa para comer? Estou a morrer de fome... hoje o almoço estava uma merda – acende um cigarro.
- Não ias deixar de fumar.
- Ia, não disse que vou? Mas ainda não é o momento certo. Estou demasiado stressado. Afinal temos alguma para comer ou não?
- Vê no frigorífico.
- Isso quer dizer que não fizeste nada para comer?
- Não estava com vontade. Era suposto fazer alguma coisa para comer?
- Não! Não era.
- O que se passa?
- Não se passa nada. Nada mesmo. Mas porque é que não fizeste nada? Estou a morrer de fome. Passo o dia a trabalhar e o que me dão é um almoço que não serve nem para a cova do dente.
- Não sou teu criado.
- Eu não disse que eras.
- Subentendeste.
- Mas queres discutir?
- Não estou para aí virado... dá-me um dos teus cigarros.

Sentam-se em frente ao sofá a assistir televisão. O volume está quase no mínimo e o silêncio entre eles é mortal. Só resta dizer que no dia seguinte já não estavam juntos. Cada um em sua casa fazia jantar para um com medidas para dois. É o hábito!

“TRICK”

Respirava lentamente nas horas que por si passavam. O fim-de-semana havia-lhe proporcionado um espaço de total leveza: o sol que banhava as águas do mangue que cruzavam com as do mar; o vento em tom de espera para ir refrescando o corpo de tempos em tempos; a areia dourada; a paz mortal dos pensamentos. Mas tudo isso eram, agora, memórias. De regresso ao seu quarto, por onde um furacão havia passado, deitou-se na cama com o olhar fixo no teto. O céu estrelado já lá não estava, não como na noite anterior onde constelações e cometas puderam ser avistadas. E, no seu coração, recordações palpitavam de tempos passados, de lembranças que lhe torciam o coração. Uma melodia acompanhava-lhe os pensamentos: A noite do seu aniversário, há oito meses atrás, o dia em que assistira ao mesmo filme que vira naquela noite... E não conseguiu ficar indiferente às memorias que consigo vinham agarradas. E efeito devastador do amor, das palavras, dos olhares... da dureza das expressões e das emoções trocadas. E bastava esperar só vinte minutos e... parabéns! Tudo teria sido mais que perfeito.

“Gabriel sits near Mark. Finally they are alone. Gabriel says:
- Tonight's been a mess.
- Yeah…
- But, you know, some of the mess... I mean… I did have a good time tonight... Even though, you got to admit it was really a mess.
- You know, I would've invited you back to my place, but…
- Aw, it's all right. Don't worry about it.
- No. I would have, but... the lady I told you about...
- Yeah?!
- She's my mother. I live at home.
Gabriel pays the fries and get up:
- I have to pee.
- Me, too.
They go to the bathroom. And during the pee Mark says:
- We're alone.
- Yeah, finally!
Mark starts to sing the song that Gabriel wrote to his musical play:
Enter you. Voilà it’s showtime. I hear the music of a…
They sing together:
- …dance and a dum-diddy…
- Enter you – Mark sing.
- You're singing it wrong.
- What?
- Don't sing it.
- It's a good song.
- Shut up.
- Well, it is.
- You're being polite. Shut up. – Pause – You really think so?
- Yeah. It's really good. Enter you… That's all I know. You have to teach me the rest.
- I need a piano.
- We've already established that.
They touch each other and almost kiss when Mark start to talk again:
- You know, I think it's good how this turned out.
- You do?
- Yeah. We got the hard part over with.
- Oh, what about the sex?
- What kind of a girl do you think I am?

They walk in the streets of New York. They stop in a corner and Mark kisses Gabriel in his mouth. They go near a subway station and Mark writes his phone number in Gabriel’s hand. They say goodbye. Gabriel goes to a public telephone and disc the numbers. We can ear the answering machine:

- Hey, this is Mark. You got me. Leave a message.

Gabriel smiles and start walking singing:

Enter you. Voilà, it's showtime. You brought the house down with a dance and a dum-diddy. Enter you in less than no time. This ugly drama has become pretty. Up went the curtain. My lines felt wrong. Intermission seemed so far away. Applause uncertain. The scenes too long. Life was like an uninspiring play, but now you're here, we meet stage center. I thought my story line was through then from the blue… Enter you!”

CRÓNICAS DE UM PORTUGUÊS

Ao cruzar o oceano deparo-me com um novo mundo, um novo olhar sobre os modos, a cultura e a arte. E, apesar da mesma língua, tudo parece distante, apartado da minha própria cultura. Europeu, aqui, me chamam. Mas mais não sou que um habitante da cauda da Europa. E esta é agora a minha nova vida. Tento apreciar o que me rodeia, não ficando contente com o vejo. Fico pasmado com a massificada construção de torres que almejam tocar o céu, com a abdicação da perfeição para alcançar a quantidade... e a história? Onde fica, para onde foi? As vossas memórias não são mais do que um álbum de retratos antigo, a preto e branco, a escamar nas pontas. É urgente a intervenção na narrativa dos antepassados. Abdicar do novo design para restaurar o velho, arranjá-lo, redesenhá-lo, reinventá-lo. E a tudo isto chamo criação, invenção, inovação. Nós somos feitos de história e um dia desejaremos que ela não seja esquecida.

THE SHOW MUST GO ON

Tudo pelo qual tinha vivido estava agora a acontecer do outro lado do oceano. E estava a acontecer sem ele. Sentado em frente ao computador apenas poderia acompanhar o espectáculo em escassas imagens, e isso, destruía-lhe o coração. E o problema não era que estivesse a acontecer sem si ou consigo. Simplesmente ele não estava envolvido no projecto para o qual tinha dedicado parte da sua vida. E mal sabiam as pessoas dessa importância.

Já tinha concluído à algum tempo que nascera fora de época. Nascera tarde demais. Tarde demais e com a voz cansada e obstruída. O seu universo estava adiantado dez anos. E nunca sentira tanto isso como agora. O seu amor, os seus sonhos, os seus pensamentos tinham mais dez anos do que a sua idade. Mas o espectáculo tinha de continuar. E tornar-se-ia mais uma mera memória que não chegaria a viver. Mas estava certo que um dia haveria de se encontrar. Um dia encontraria o ponto perfeito, o quanto baste para a sua vida não ficar nem insossa nem salgada. E era para aí que caminhava. Para o dia em que levaria o dedo à boca e sentiria o sabor perfeito. E assim deixou o espectáculo continuar, no palco e na sua vida. “No day but today”.

http://www.rentomusical.com/

O CICLO DA FRUTA

Nada para além disto... nada para além do nada! De que servem os ensejos fugazes do indisciplinado sentido do ser? As horas gastas na solidão das palavras, dos medos, dos unicórnios brancos que nunca chegaram a aparecer. Soltou-se a podre fruta que amadureceu demais para aquela árvore. A sua casca estava epidémica nas doenças das horas que passam. E o nada não deixou de ser o nada para além do tudo. Pois tudo o envolvia e nada lhe restava. Nem a frieza fazia parte de si ou o calor dos instantes em que julgava ser aquilo que não era. E tudo era apartado, transviado, logrado. E o tudo era o nada que morria aos poucos. Jazia sozinho no chão... a alma, o corpo, o sangue. Mas estava vivo. Disso tinha a certeza. Estava capaz de tocar-se a si mesmo e sentir consistência. Sentir a dureza. Sentir-se. Mas não sentia o que o rodeava. Tudo não passavam de imagens a preto e branco. E tudo era o nada. O engodo. O chamariz para o que não existia. Contudo, ele sabia existir-se, sabia ser, sabia que sabia, e sabia que não sabia saber. Já no chão a fruta em decomposição. O regresso às raízes. O regresso ao seu centro exposto a nu, Ao seu centro que daria nova vida, novo fruto. E deixou o tempo passar. E deixou o tempo actuar. E deixou-se estar na esperança de que tudo desse certo.

MINOTAURO

Resta-se a cidade ao labirinto de prédios, carros, pessoas e ruídos ensurdecedores. E no centro o monstro. Cavernoso corpo, corpo de homem, cabeça de animal, enfurecido em fumos densos, pestilentos, fragilizado pelos Homens, privado da doença de amar. E quem... alguém que o acolha... ninguém! Só lhe resta a traição da morte. A punhalada traseira que fere os pulmões e o ar sôfrego evapora-se para o vento, para o nada, para longe do que um dia foi... corpo de homem, cabeça de animal... e amou sem saber que o fazia. Ninguém lhe explicou. Ninguém se interessou pela besta, pelo disforme. Desprezado no centro do labirinto, sozinho, a rondar os caminhos sem saída. Se ao menos lhe tivessem mostrado o amor... se ao menos lhe tivessem dado a oportunidade de existir sem ser um monstro. Se ao menos tivessem-no deixado existir como Homem, como alma bondosa, como coração apaixonado. E de três em três anos sete rapazes e sete raparigas serviram de sua refeição e essa foi a sua aprendizagem. E no final, o seu criador, o seu alimento, matou-o. No centro do labirinto, jaz morto, aquele que nunca teve intenções de ser o que era. Um monstro. Uma aberração.

PARA UNS A LIBERDADE PARA OUTROS O DESTINO

O dia estava frouxo, apesar do sol continuar a brilhar como em todos os outros dias. Mas por ser domingo, e os domingos serão eternamente domingos, abatia-se sobre ele uma névoa de melancolia e o seu olhar arrochava sobre o horizonte. Perguntou-se porque raio os dias não ficavam tristes naquela terra! Porque é que o sol tinha de nascer brilhante todos os dias...

- Levanta-te da cama! Vamos aproveitar o domingo.
- Só mais cinco minutos...
- Mais cinco minutos? São duas da tarde! Estás a fazer-te de difícil... Ouve lá, queres desperdiçar mais um domingo?
- Os domingos são dias perdidos por si só.

Quando era miúdo, o domingo era o dia de ir à igreja. Era esse o pretexto para se levantar bem cedinho. Depois deixou de acreditar em Deus. Quando era adolescente, o domingo era o dia de mais um treino de remo. Era esse o pretexto para se levantar de madrugada. Depois deixou de remar. Quando iniciou a sua juventude , o domingo passou a ser simplesmente o dia depois do sábado. Era esse o seu pretexto para fazer ronha entre a cama e o sofá...

Lá se levantou e fez todos os preparos para sair de casa. Com uma proposta como a que tinha recebido eram impossível não estar expectante:

- Hoje vais experimentar windsurf!

Hoje vou o quê?, pensou. Bem, e porque não. Estava no Brasil, era a altura de fazer aquelas coisas que a sua vida citadina e organizada não permitiam (ou a sua cabeça não estava moldada para tal). Foram até à escola de Windsurf e quando deu por si estava em cima da prancha com uma vela para levantar e começar a andar sobre a água. Não tardou muito a dar a primeira queda e outra e outra até conseguir aguentar os seus primeiros cinco minutos completos sobre a prancha. Mas mais importante que o equilíbrio era estar de novo no meio do mar, nas suas raízes, na sua liberdade. O tempo à sua volta tinha parado. Era ele, o vento e o mar. Uma batalha travada no meio da água. E não existia mais nada naquele momento. Experiências daquelas só se vivem uma vez. Quando voltasse ao mar sabia que não iria ser igual.

Já na praia, em conversa com um dos instrutores...

- Queria ser veterinário, mas acabei como instrutor de windsurf.

Queria ter-lhe dito que ainda tinha tempo, que corresse atrás desse sonho, que não deixasse para trás aquilo que toda a vida desejou fazer. Como era bom correr atrás dos sonhos. Viver experiências como aquela que estava a ser a sua. E, olhando à sua volta, optou pelo silêncio. De que servem as esperanças no meio da miséria. Nem todos têm o mesmo destino sobre a terra e nem todos os nossos desejos são aqueles que cumprimos.

CONVERSAS ENTRE A VIDA E A MORTE II

- Estás aí?
- Eu disse-te que estaria; não disse...
- Eu sei que disseste. Mas nem sempre acredito que ainda falo contigo.
- Mas aqui estou eu. Podes falar. Do que queres falar hoje?
- Não sei bem. Estava aqui a olhar o mar e lembrei-me de ti. Lembrei-me que a saudade existe em mim desde o momento em que partiste. No momento em que achei que nunca mais iria ouvir a tua voz. E nesta brisa refrescante do ar, foi como se me abraçasse e me reconfortasses um pouco. Tu, que corres na brisa do vento, ainda sentes a sua aragem?
- A forma como eu experiencio as coisas é diferente. Muita coisa muda quando o nosso corpo não é mais físico. É verdade que já não sinto o reconforto da brisa... Eu agora sou a brisa. O teu conforto.
- Isso quer dizer que não tens ninguém que te conforte?
- Não podes ver as coisas segundo esse prisma. É claro que eu tenho quem me conforte. Ou julgas que por vezes também não me sinto sozinho? Só que o reconforto aqui é diferente do que estás habituado a experienciar. Aqui somos as partes de um todo. Aqui somos aquilo que vocês não conseguem ser aí. No entanto também temos os nossos medos e dúvidas. Eu nem sei se o que estou a viver agora será eterno. Dizem por aqui que quando não houver mais ninguém que pense em nós mudamos para outro estágio da vida. Mas são só rumores. Um dia, numas voltas que dei por aí escutei uma conversa. Eles falavam da reencarnação. Do nosso regresso à terra enquanto corpo físico. Deduzi que esse seria o terceiro estágio da vida. Quando mais ninguém nos requisitar aqui, voltamos à terra. Mas como sabes, nunca fui uma pessoa de muitos estudos aí na Terra. A vida não me proporcionou essa educação e muito do que tenho aprendido tem sido agora. E, por isso, às vezes é-me difícil entender certas questões.
- Eu não gosto muito de pensar no que virá depois da morte. Quando morrer logo saberei. Agora tenho de me preocupar com a vida.
- Obrigadinho...
- Eu não quis ofender-te. Mas a verdade é que eu nem sei se a tua voz não é fruto do meu imaginário. Se não sou eu que te criei na minha cabeça, a viveres nesse outro mundo. E tu sabes como eu sou imaginativo. Podes muito bem já nem existir com consciência de poderes dizer-me todas estas coisas. Mas não fiques triste. Pois enquanto tiver o poder de te imaginar, podes contar sempre comigo.
- A verdade é que é tudo uma questão daquilo em que queres acreditar. Daquilo a que a tua mente se dispõe a fazer existir. Tu és aquilo que quiseres ser, aquilo que acreditares ser. Mas também sabes que não é só acreditar. Tens de fazer por isso. Para eu não deixar de existir tens de chamar por mim. Não vale a pena só acreditares que eu existo. Tens de me fazer vir ao teu encontro. Tens de me tornar real!

A META

Ele não conseguiu suster mais a respiração e, sofregamente, inspirou todo o ar que pôde para dentro dos seus pulmões. Deixou-se estar, assim, a respirar lenta e pausadamente toda a essência que compunha o ar, apreciando o mar que o envolvia. Sentia um peso no seu interior, entre o peito e a barriga, que lhe desconcentrava a vista. A náusea da imaginação de um último inspirar, para que a seguir pudesse, inconscientemente expirar e retornar ao processo inicial, a incapacidade de decisão em relação a todo o processo deixava-o desalinhado. Era a vida que o compunha, nunca a morte. Nunca convivera muito bem com a morte. E a ideia de perder alguém estava-lhe atravessada como um punhal no coração. Velar um corpo era como velar a própria vida. A debilitação da acção perante o efémero. Apreciava então a vida com as suas últimas forças, como se dos últimos metros de uma prova de corrida se tratasse. Só restavam aqueles metros... era correr o mais depressa que podia. Para ele, isto era vida. E mesmo que perdesse a corrida, sabia que tinha dado o seu melhor. Sabia que aquele esforço nos últimos metros não tinha sido em vão.

Poder-se-á entender a beleza da chegada, da finalização, da concretização, quando não damos tudo no seu término? Quando deixamos o corpo ceder? Quando deixamos de acreditar em nós? Quando sentimos que não vale a pensa o esforço daqueles últimos instantes já que não vamos chegar em primeiro lugar?

A ESSÊNCIA DO AMOR

Se o amor fosse uma coisa fácil será que ele lhe daria tanto valor? Será que o quereria viver? Provavelmente fartar-se-ia da sua facilidade. O rodopio da vida é que o levava a querer amar, amar muito. Segundo a Bíblia, Deus escreve direito por linhas tortas. Ele refez a frase dizendo que o amor era torto por linhas direitas. Ninguém sabe escrever o amor direito, pensou, isso não existe. Se assim fosse, quem compraria os livros ou veria os filmes que tanto mexiam consigo? O amor seria sem graça e morreria sozinho e abandonado.

Ter medo não é um crime. Amar também não. E é por isso que os dois coabitam no mesmo espaço. O medo e o amor. Um sem o outro não podem existir. Pois se não houvesse medo do que seria o amor? Como iria classificar o amar alguém se não soubesse explicar o que era ter medos e receios? E é por isso que não podia ter medo do próprio medo. Pois o medo estava presente no amor. E amando, consequentemente teria sempre medo! E por mais silencioso que vivesse esse medo, ele estaria lá. E ele sabia disso.

E SE DAVID TIVESSE SIDO ESCULPIDO VESTIDO? (CONTINUAÇÃO DE “QUANDO O HOMEM TOMOU O CENTRO DAS ATENÇÕES”)

Ainda tinha presente na sua memória as aulas de história da arte. E essas recordações eram pacíficas. Sempre foi atraído pelo estudo da arte. Sem grandes receios e com prazer na descoberta das novas formas de olhar o mundo. Sempre acreditou na educação do olhar com conta peso e medida. Pois não convém apenas assimilar as coisas... é preciso entender, interligar, criticar e pôr em causa. Só depois de todas estas fases poderia sentir-se sabido. Não gostava daqueles que empinavam as coisas e seguidamente despejavam a lição bem estudada. Isso não é educar o olhar. É, sim, direccionar o olhar, torná-lo unilateral, obsoleto, vazio.

De que serve saber o nome de todos os pintores se não se sabe ter um olhar critico sobre as suas obras? A arte é um jogo: um quebra-cabeças. Um mundo sem retorno. E quem lá está de lá não pode sair... o problema é viver-se dentro dele com classe. E bem sabemos que burlões é o que não falta por aí.

Mas, no meio de tudo, David continuava nu. Ainda se lembrava da aula em que o slide projectou aquela imagem na parede branca. Os risinhos ecoaram na sala e rapidamente foram silenciados pelo olhar da professora. Ali estávamos nós, ali estava ela, ali estava ele, David nu! E ninguém se apercebeu que o importante na escultura não se encontrava no corpo despido mas na sua cara. Miguel Ângelo explorou não só os cânones clássicos do herói-atleta, mas todo um novo olhar dramatizado da cena. David está concentrado e inquieto antes de um combate. E a riqueza está na inquietação perfeita do seu rosto.

Que diferença faria que estivesse vestido se o que importava era o seu rosto? Vestido ou nu o foco era a cara. Mas os anos passaram e o nosso olhar ficou viciado no pudor. E o foco automaticamente mudou de lugar. E a importância de uma boa escultura passou a estar no seu conteúdo e não na sua forma. Hoje pretende-se que um objecto de arte seja forte, explosivo, inquietante, ninguém pede que ele seja perfeito! E assim ficou o homem... forte, explosivo, inquietante e cada vez mais longe da perfeição!

SURPRESA!

Uma surpresa é sempre uma surpresa. E que surpresa teve quando abriu a porta e viu a sua mãe! Estava longe e tudo não pareceu mais do que uma imagem na sua mente. Uma imagem que demorou a tornar-se real, sendo que nunca lhe pareceu efectivamente real aquela presença no seu novo mundo. E mesmo que tenha tirado fotos para o comprovar, ainda assim, jurava que não havia acontecido. Mas era mesmo ela, a sua mãe, de braços abertos para o abraçar e juntos viverem um pouco mais de um tempo a dois.

O mesmo sorriso, o mesmo olhar, o mesmo coração... batia agora em uníssono de saudade recuperada, de longe memória apenas falada. E foi então que se apercebeu que havia mudado. Já não era o mesmo, estava crescido, no mundo dos adultos, onde a terra que os seus pés pisavam não era mais do que um caminho escabroso de labirintos infinitos por onde se ia perdendo e achando; onde a força tinha mais força que o próprio significado de força. Pois a vontade acarretava consigo esse vigor, em tempos imaginado, nunca antes vivido. Já que a vontade no seu habitat natural não passa de um capricho. De um dado adquirido.

Fechou os olhos e voltou a focar. E só tempos mais tarde correu para os seus braços sentido aquele aperto que une dois corpos há muito separados pela distância. Não que o muito fosse efectivamente muito, mas ali o tempo passava a triplicar. Qualquer palavra que viesse do outro lado era ampliada ou reduzida três vezes do seu sentido mais puro. E puderam falar no mesmo tom, frente a frente, olhos nos olhos, sem que tudo parecesse uma voz no fundo do túnel. Mas rapidamente tudo se esvaneceu. E a voz foi ficando cada vez mais longe, mais remota, afastada, ausente... e ponderou que tudo não tivesse passado de um sonho. Um bom sonho. Finalmente um bom sonho! Um sonho que jurava ter sido verdade...

RADAMES’ LETTER por ADAM PASCAL

"I'm sorry for everything I've said. And for anything I forgot to say too. When things get so complicated. I stumble at best muddle through. I wish that our lives could be simple. I don't want the world only you. Oh I wish I could tell you this face to face but there's never the time never the place. So this letter will have to do: I love you...."

From: AIDA

A CARTA

Preparou a cama para se deitar. Fechou os olhos e não demorou muito para que adormecesse. Pela porta entrava uma brisa que o esfriava naquela noite quente. O dia tinha sido calmo. Era domingo, e como qualquer domingo, em que parte do mundo se estiver, é um dia em que as ruas parecem desertas, os carros ficam na garagem, o ar apresenta-se sereno e os pensamentos fluem a mil à hora. E, finalmente, deitou-se para acordar numa segunda-feira agitada, em que a cidade acordava às cinco da manhã, o barulho nas ruas era ensurdecedor, em que as pessoas andavam agitadas para se dirigirem aos postos de trabalho, para viver mais um dia de labuta.

Mas a sua segunda-feira começou mais cedo do que esperava. Acordou a meio da noite com um terrível pesadelo. Sonhara com o seu amor, sentado algures, a ouvir uma voz segredando-lhe ao ouvido coisas terríveis sobre os dois. A voz aliciava-o a pensar coisas tenebrosas do propósito dos objectivos da viagem, das incertezas ao amor partilhado pelos dois, à ideia de que a sua partida não fora mais do que uma forma de encontrar uma nova vida da qual ele não fazia parte, do seu egoísmo em deixá-lo sozinho naquela casa que construíram para os dois morarem... A distancia e a saudade estavam a trabalhar no seu cérebro, deixando-o ainda mais perdido na sua viagem. Todas aquelas coisas mexeram com ele. A noite parecia mais escura do que nunca. E o som daquela voz ecoava por todos os cantos do quarto.

Ficou sentado na cama esperando o tempo passar. Queria correr da sua cabeça a memória daquele sonho. Mas estava a ser uma tarefa complicada. E não conseguindo cerrar os olhos agarrou numa folha e numa caneta e escreveu uma carta ao seu amor:

"Meu amor,
acho não consegues imaginar o que é estar longe. O que é ter saudades. Tu não estás longe do teu mundo, da tua família, da tua vida! Tu apenas viste uma parte da tua vida partir. Eu vi um mundo inteiro deixado para trás quando apanhei aquele avião. Da janela tudo começou a ficar mais pequeno, mais distante, longínquo e por fim apagado pelo oceano. Um mundo que não tão cedo vou voltar a ver. Aterrei no desconhecido. Tive de lançar novas bases para poder sobreviver. Não é fácil largar tudo! E no primeiro momento em que me vi aqui, sem ti, a primeira vontade foi fazer as malas e regressar para a nossa casa.

Tu acordas de manhã, sais à rua, naquela rua que nos é tão familiar, tomas o teu café, compras o teu tabaco, e rumas à tua vida montada, sem irregularidades. Tudo te é familiar. Agarras no telefone e combinas um café com as pessoas que tanto gostas. Elas estão mesmo ali, para ti e num segundo estás rodeado daquilo que sempre te fez feliz. E podes falar com elas, estar com elas, senti-las. Eu não! Eu tenho que recomeçar tudo outra vez. Sair de casa sem saber onde estou. Sair de casa para o indefinido do que será o meu dia. Sair para o vazio. E se, para ti, deve custar chegar ao fim do dia e veres que só estás tu na nossa casa, imagina o que é ficar sozinho da minha vida o dia todo.

Não te quero deixar preocupado comigo. É claro que vou encontrar novas pessoas com quem estar, falar, desabafar. Mas não deixa de ser um mundo efémero, que fica cá. E quando eu voltar posso não encontrar o que deixei onde deixei. Eu viajei para o desconhecido e a verdade é que voltarei para o desconhecido. Tu estás no teu espaço, na tua vida, podes mudar o que queres e quando queres. E quando eu voltar podes mesmo não aí estar. Para ti será sempre o conhecido.

É sempre mais fácil culpar aquilo que não se vê do que aquilo que se vê. Ainda não coloquei nenhuma fotografia tua no meu placard (falha minha) mas acredita que tenho mil imagens e recordações de ti junto ao meu coração. Fiquei abalado com um sonho, ou deveria chamar-lhe de pesadelo, e preciso que leias o que tenho para te dizer. Provavelmente nada disto faz sentido, mas sonhei que uma voz segredava ao teu ouvido coisas maléficas sobre nós.

A voz não parava de dizer que eu tinha posto os meus interesses à frente da nossa relação. Se ser feliz não está implícito na nossa relação... então digo aqui, bem alto, que pus os meus interesses à frente. Agora, se prezamos a felicidade de cada um compreendes que precisei de voar. Voar para aprender mais um pouco da vida, para um lugar onde me possa completar mais um pouco, experienciar mais um pouco. Aprender aquilo que só se aprende uma vez na vida. E sabes como eu me sentia naquela faculdade. Estava a tornar-me uma pior pessoa, estava a deitar-me abaixo, estava a perder-me na tristeza daquele ensino. Entendo que seria mais fácil para nós se eu aguentasse tudo aquilo e ficasse aí. Mas ambos sabemos que esse espírito não faz parte de mim... e saltei, saltei pelo oceano para aprender um pouco mais aqui, e já me sinto uma pessoa mais rica.

Fico com receio de que não tenhamos falado o suficiente sobre esta viagem, e agora aquela voz não me sai da cabeça, aquelas palavras, mas quero que fiques a saber o que penso. Uma vida a dois não compreende estarmos colados um ao outro. Compreende, sim, amarmo-nos... onde quer que eu esteja, onde quer que tu estejas. No momento em que nos deixar-mos de amar, aí sim, terminou a nossa vida a dois, não enquanto estamos longe pela distância. Quem ama verdadeiramente não faz estas coisas, disse-te a voz ao ouvido. Então essa pessoa não sabe o que é amar. Essa pessoa só sabe o que é possuir. O amor não se possui, não é algo que se possa comprar. O amor tem de existir.

Estou abalado com tudo isto. E a ideia de que possas pensar que não fazes parte da minha vida agora que eu estou aqui, deixa-me aterrorizado. E por isso continuarei a escrever-te as últimas novidades para que não percas pitada do que se passa aqui. E falaremos ao telefone horas seguidas para que o rasto da nossa voz não se perca. Em relação à tua boca, ao teu corpo, ao teu sexo... seria mais fácil não sentir nada disto, mas se o sinto é porque existes em mim!

Se eu pensasse em ti nem embora tinha ido, disse-te também a voz ao ouvido, e essas palavras martelaram-me a cabeça. Se não me tivesse deixado vir embora provavelmente já tinha deixado de pensar em ti. Tu foste a pessoa que me deixou partir, que me deixou voar, a pessoa que nunca deixou de me amar... aquele que eu quero ao meu lado."

Acabou de escrever a carta e adormeceu. No dia seguinte, olhou para aquelas palavras e pensou no seu absurdo. Se ele enviasse a carta ao seu amor estaria a alarmar algo que apenas existiu na sua cabeça, no seu sonho (ou pesadelo), naquela noite quente de domingo para segunda. Dobrou a carta cuidadosamente e enfiou-a na gaveta. Foi só um sonho. Só um sonho.

QUANDO O HOMEM TOMOU O CENTRO DAS ATENÇÕES

Da janela, o mar corrido em direcção ao outro lado, à civilização europeia. Um marco de história e cultura. E na ponta, Portugal, quase a querer fugir, afastando-se cada vez mais, deixando-se ficar para trás. E quem diria, que um dia, foram donos dos mares... navegaram pelas ondas bravias, descobriram novas terras e deram voz a vários povos ao longo do globo. E o que é feito de todos os feitos? Não passam de histórias grandiosas, de um passado inigualável, de uma realidade que não é mais a presente. Só resta a saudade... saudade de tempos gloriosos; e o fado não é mais do que mágoa. A mágoa que chora pelo que já teve, pelo que já não tem, pelo que poderia ter tido...

A Europa, regenerada pela Renascimento à cinco séculos atrás, segundo a exaltação do Homem, segundo a valorização de um ser, supostamente perfeito, é hoje o fruto de uma plantação, em tempos, gloriosa. A roda da vida... a roda da fortuna. Essa que, segundo as ciências, ditas ocultas, apresenta-se como tempos de mudança, instabilidade, ideias sem conclusão, dificuldade... Teria, então, o Homem mais valor que o Divino? Onde encontrar o equilíbrio?

Estava deitado na rede a ver o mar. O mar era a sua janela para o passado. O que encontraria quando voltasse? Teriam as paredes dos prédios novas histórias para contar? Ou apenas lhe diriam que pouco ou nada se passou? Teria sido o destino enquanto Homem ou o destino Divino a empurrá-lo para aquela viagem? Mas o que mais tentava perceber naquele momento era a natureza humana. A sua condição vs a condição dos locais. O mundo europeu vs o novo mundo. Onde existiria mais “humanidade”? Estava na altura de tirar o Homem do comando... o homem deixou de saber ser Homem.

E nas voltas das suas ideias indagou: “E se David tivesse sido esculpido vestido?”

SARAMAGO CEGOU O BRASIL

Já estava instalado num espaço físico a que podia chamar de “casa”. O tabernáculo onde retornava todos os dias. O lar para o qual tinha comprado a sua primeira rede onde passava partes das suas tardes a ler, ouvir música ou simplesmente a descansar. Contudo, ainda não podia chamar de sua aquela cidade imensa, aquela cultura tão diferente da que estava habituado. E, de certo modo, aquilo desconcertava-o.

Estava num mundo onde ricos e pobres batalhavam diariamente para conseguirem co-existir no mesmo espaço. Onde prazeres e privações se misturavam na orgânica da cidade. A favela ao lado do prédio de luxo. O pobre jogado no chão por onde o rico passa com o seu carro novo. O que teria acontecido para que tudo tivesse chegado àquele extremo? Onde as pessoas tinham medo de sair depois do sol se pôr. Onde andar na rua era um acto de coragem ao mesmo tempo que um acto de sobrevivência. Onde os sentidos tinham de estar despertos... pois ao mais ínfimo descuido o mal vencia sobre o bem.

Ele já nem procurava soluções para o problema que se avistava maior do que a sua cabeça podia imaginar. Ele só queria tentar perceber como tinham chegado àquele estado. Lembrou-se das palavras de José Saramago no livro “Ensaio sobre a cegueira”, as discrições daquele mundo onde todos estavam cegos... onde não se olhava a meios para atingir os fins. Onde a sobrevivência estava acima da moral. Seriam aquelas descrições tão diferentes do mundo que o rodeava?

A degradação do homem. E no meio da degradação a festa sem fim. A alegria de chegar ao fim-de-semana e voar para outra realidade. A realidade em que são livres e só o samba e o forró tomam conta dos seus corpos. De onde vinha a energia, de onde vinha o espírito, de onde vinha todo aquele calor? Eram perguntas que ocupavam a sua cabeça e para as quais ainda não tinha as respostas. O tempo ainda era muito pouco. Ainda agora tinha chegado a esta aventura. Ainda agora o seu coração batia a um ritmo português. Estariam os brasileiros cegos? Ou ainda se vivia o principio de uma grande cegueira?

O APARTAMENTO 1801

As mudanças tinham terminado. Estava instalado na cidade e no apartamento 1801. Aquela seria a sua morada, aquele seria o seu espaço, aquele seria o seu mundo... mas um mundo com dias contados: e o relógio já começara a andar para trás. O ensurdecedor tique taque que não saía da sua cabeça. Tanta coisa para ver, fazer, conhecer... e cada hora que passava era menos uma hora que tinha para o viver... e cada dia era menos um dia...

“Se Deus é por nós quem será contra nós” era o que estava escrito na porta de entrada do apartamento 1801, com vista para o mar, na boca da praia. Em tempos acreditara naquelas palavras... não mais. O seu sentido deixara de fazer sentido. A incessante busca pela divino estava encerrada. Afinal, era ele e o mundo. E tudo o resto que se interpunha era simplesmente energia. E nisso ele já acreditava: as energias que movem o mundo. E a energia estava por todos e contra todos.

Partilhava o apartamento 1801 com outras duas pessoas. Dois portugueses que, como ele, partiram para a aventura. Um rapaz e uma rapariga. O que faziam em Fortaleza? O que os levou até lá? Estariam destinados a viver juntos? Mas à parte de todas as conjecturas eles foram uma agradável surpresa no seu percurso. Dois mundos, distantes do seu, prontos a serem compartilhados, explorados, vivenciados. Sentiu-se afortunado por os ter encontrado.

Antes havia-se perguntado o que teria sido se tivesse ficado no apartamento 901... mas naquele instante só lhe permanecia na cabeça a vontade de descobrir a nova vida no apartamento 1801.

O APARTAMENTO 901

Fazer uma mudança dentro da própria mudança é sempre complicado! Não foi fácil chegar até Fortaleza. Todo o processo emocional e burocrático levaram muito tempo a processar. Não foi a decisão mais fácil. Muita coisa estava em jogo, mas era preciso ter um raciocínio frio perante o aquecimento global que vivia na sua vida. E depois de estar instalado outras mudanças iriam acontecer. Vivia num apartamento, no nono e último andar, onde o ritmo não parava. As pessoas que dividiam consigo o espaço eram de uma vivacidade que o deixou relaxado logo nos primeiros minutos. Tinha chegado até eles pelo número que trazia consigo. No apartamento 901 a vida era agradável. E, quando tudo parecia encaminhado, encontrou outros portugueses, largados ali na aventura de estudar num país longínquo das suas terras natais. E o convite da partilha do apartamento 1801 surgiu. Mudar ou não mudar? Eis a questão! No fundo estavam ali todos no mesmo pé, no mesmo barco, na mesma descoberta. Estaria pronto para mudar de novo quando tinha acabado de se mudar? O rodopio de mudanças ocupara a sua cabeça. E, numa tarde de calor, ficou decida a mudança para o 1801. Um prédio de dezoito andares situado a dois quarteirões da praia.

Na sua cabeça as coisas continuavam estranhas. Afinal, ele era uma pessoa que se adaptava bem a qualquer ambiente, contudo, precisava de um poiso certo para onde retornar. Em tempos achou que não; mas naquele dia descobriu que ainda havia muita coisa em si por definir. Os conceitos que achava saber não eram assim tão certos. Seria ele a pessoa que julgava ser? Ou tudo não passava de uma vontade de conviver mais um pouco com os habitantes do 901? Afinal foram eles que o receberam de braços abertos. Soube que iria ficar consigo um sentimento de tristeza em relação ao que poderia ter sido...

O JOGO

Sentou-se na cantina da faculdade para comer alguma coisa antes da aula começar. Olhou à sua volta e o seu novo mundo estava a compor-se. Em seu redor tudo lhe parecia mais familiar; os caminhos, as pessoas e as paredes. Essencialmente as paredes que o olhavam de soslaio não o intimidando mais. As grosseiras paredes eram agora apenas paredes. Paredes novas, paredes velhas, paredes limpas, paredes sujas, paredes brancas, paredes verdes, paredes pintadas, paredes sem pinturas, paredes de azulejo... paredes! Até a ausência do café já não o incomodava assim tanto.

Era certo que em alguns momentos ainda sentia a solidão; mas essa, agora, era apenas gerada pela saudade. Saudade que não podia evitar. Estar longe não era tão fácil como tinha imaginado, afinal estava preso a um mundo do outro lado do mar. Para os forasteiros era fácil, para os apaixonados a coisa complica. Mas a brisa que corria no calor do dia refrescava o seu corpo e trazia-lhe nova vida. A vida que aceitou enfrentar. O jogo que decidiu jogar. E sabia que no momento em que o jogo fizesse 'game over' desejaria recomeçar tudo outra vez.

DEFYING GRAVITY por IDINA MENZEL

"Something has changed within me. Something is not the same. I'm through with playing by the rules of someone else's game. Too late for second-guessing. Too late to go back to sleep. It's time to trust my instincts, close my eyes and leap. It's time to try defying gravity. I think I'll try defying gravity and you can't pull me down... I'm through accepting limits 'couse someone says they're so. Some things I cannot change but 'till I try, I'll never know. Too long I've been afraid of losing love - I guess I have lost. Well, if that's love it comes at much too high a cost. Kiss me goodbye I'm defying gravity and you can't pull me down... So if you care to find me look to the western sky. As someone told me lately - Ev'ryone deserves the chance to fly. And if I'm flying solo at least I'm flying free. To those who'd ground me take a message back from me - Tell them how I am defying gravity! I'm flying high defying gravity! And soon I'll match them in renown. And no one is ever gonna bring me down!"

From: Wicked

A MENSAGEM

O calor despertou com o nascer do sol e a brisa foi levada pela noite. Acordou cedo e foi até à praia. O dia estava digno de uma bebida à beira-mar. O seu corpo havia secado com a alma, pois a coisa mais preciosa tinha ficado do outro lado da imensidão da água, que, agora, se prostrava aos seus pés. Já não estava mais sozinho... mas mesmo que a companhia fosse importante para si, mais real era o sentimento guardado por aquilo que não podia ver.

Encarou o mar de frente e pensou: "Agradeço por te ter ao meu lado, por ter o teu amor por inteiro. Mostraste-me o que é amar e ser amado. Posso ainda não saber muito sobre amor, mas as verdades que eu sei foste tu quem mas ensinou. E assim é porque me amaste, um dia, de inesperado. E porque me amas, hoje, na ausência.

Fechou os olhos e voltou à realidade. À sua volta estava tudo animado. Era um bom presságio!

A FORMIGA

O tempo estava quente e o coração tinha momentos em que desejava saltar do corpo para fora. A cidade ainda era grande demais para o seu desconhecido olhar. E sentiu-se como uma formiga num formigueiro estrangeiro, onde toda a organização já estava estabelecida.

Perdeu os medos e saiu de casa, sozinho, caminhando pela matriz ordenada da cidade, quarteirão a quarteirão, até chegar perto do mar. Aí respirou o ar salino e admirou a sinfonia das ondas, o vai e vem que relaxou os seus olhos; e o coração bateu mais devagar.

Do outro lado ficaram as memórias, do outro lado do oceano. Consigo, apenas o desejo de conhecimento de uma nova terra, onde bebiam a água dos cocos, onde o medo fazia parte do dia-a-dia, onde o sol recolhia às seis da tarde, onde estava sozinho...

SEGUIR O CURSO

O dia tinha chegado. Rumou a Fortaleza onde ia ficar 10 meses.

Aquele foi um dia complicado. Deixar Lisboa e as suas pessoas para trás. Aquando da entrada para as portas de embarque, nos últimos olhares, nos últimos abraços, as lágrimas, supostamente proibidas de comum acordo, mas inevitáveis, visitaram os seus olhos e os dos que se foram despedir. Foi estranho atravessar aquelas portas sozinho. Esse foi o início da sua aventura. Um aperto no peito. Uma lágrima. Uma mensagem a dizer: "Amo-te". E o avião levantou voo... e no ar disse ainda um último adeus a Lisboa, à sua cidade, à sua antiga vida.

Não sabia como ia ser dali para a frente. Não sabia o que ia encontrar. Quem iria conhecer. O que iria fazer. Levou consigo um número de telefone e a esperança de que alguém atendesse do outro lado.

-Estou?...

LIVRE!

Procurar algo para lá do que os olhos viam, era o que tentava fazer todos os dias, desde o acordar ao deitar. Descobrir o que estava para lá da natural percepção das coisas. Em tempos apelidou-se de sonhador, mas essa ideia foi-se desvanecendo com o tempo, estava a crescer. E nada o podia impedir. Onde ficaram as viagens às terras perdidas? Onde pararam as batalhas travadas nos grandes campos verdes? Onde se perderam essas memórias? Onde se perdera ele?

O tempo corria atrás dele. O tempo corre atrás de todos. Ele não era excepção. O tempo trazia-lhe o esquecimento. O esquecimento de um tempo em que lutara pela liberdade. E parecia, agora, que nada fazia sentido. Onde ficou todo o sonho? Quando começou a realidade não imaginada? E olhou para si, uma figura desleixada, desarrumada, desconcertada, e não se imaginou assim. Só o seu rosto, no espelho, revelava os tempos longínquos em que acreditava. Liberdade.

Livre, disseram-lhe um dia, és livre!

Serei?, pensou.

Talvez. Não tanto como ontem... não tanto como amanhã.

TODOS DIFERENTES, TODOS DIFERENTES (ESPERA! NÃO DEVERIA SER TODOS DIFERENTES, TODOS IGUAIS? JÁ NÃO SEI!)

Ao longo desta caminhada, tanto histórica como de reflexões, várias têm sido as personagens que cruzaram o seu caminho: o Sr. Ninguém, o falecido avô, o miúdo das estrelas, a cigana de Belém, Lourenço e, numa componente mais literária, o escritor Frederico Lourenço. Hoje, pretendo juntar uma nova personagem, muito importante na sua vida e que o tem acompanhado ao longo dos anos, habitando e partilhando consigo a casa e a vida: o seu amor.

Regressado de viagem, estava de volta nos seus braços, na sua companhia, na sua afeição, na sua vida... não era um amor qualquer, era um amor oblativo. A única barreira que, agora, os separava era a sua própria viagem. Aquela que iria realizar em breve sem data marcada de retorno. Era, de certo modo, um susto para ambos. As separações são sempre momentos críticos assim como as uniões. E num misto destes dois sentimentos relato aqui o dia em que os dois se voltaram a cruzar nos olhares. Assim o conto para que possa levantar questões que, invariavelmente, levarão a outras questões.

A problema primordial debate-se na questão do porquê das pessoas se aborreceram umas com as outras. E, usando-me das palavras da Regina Spektor, traduzindo-as de uma forma possível e, sem intenção disso, mas acabando por lhes destruir qualquer sentido no contexto onde se inserem, mais não seja pela não intenção de plantar-vos aqui a letra toda, é a partir das suas palavras que pretendo iniciar a minha exposição relativamente ao tema.

“As pessoas são apenas pessoas, não o deviam deixar nervoso. O mundo é perpétuo, ondulante em si, vem e vai, e se não sacudisses os teus plásticos as ruas não terias tanto plástico. E se o beijares, os dois estarão a ser práticos, pois as pessoas são apenas pessoas, as pessoas são apensas pessoas como tu.”

Então porque é que o seu amor não o abraçou convenientemente? Porque não o abraçou da forma que duas pessoas que se amam se abraçam? E porque é que isso o aborreceu? Por um lado, as pessoas eram apenas pessoa, não o deviam deixar nervoso! Mas avaliando correctamente a questão apercebeu-se que, por outro lado, as pessoas eram mais do que pessoas. E, extrapolando a questão para lá do seu amor, abraçando também a amizade, as pessoas passavam, com o tempo, a significar mais do que corpos físicos presentes ao seu lado. Não era só matéria palpável que o emocionava, mas toda a componente extra-física, invisível, emocional, energética, sensorial que o inundava de excelso prazer quando sentia desenvolver por outrem algo mais do que vê-las como simplesmente “pessoas”. Aqueles momentos graciosos em que se deixava envolver por simples palavras conjugadas, por simples gestos ingénuos, por simples sentimentos verdadeiros. Era essa a plenitude da amizade e do amor que tornavam as pessoas algo mais do que simples “pessoas”.

Voltando à história do seu amor, porque me parece justo que se explique aqui o que aconteceu às duas personagens antes que exponha as retóricas questões, ao chegarem a casa depois de uma viagem de carro, ao confrontarem-se sobre os acontecimentos ocorridos no tempo que passaram afastados, embateram contra questões divergentes, as quais já imaginadas pelo seu amor (resultando num frouxo abraço), levaram a algumas horas de debate aceso noite a dentro. E, pondo em pratos limpos o que aconteceu (para que tudo fique esclarecido), a nossa personagem, na ausência do seu amor, foi a um bar de strip, por convite de amigos de ambos, onde assistiu ao espectáculo, participando de alguns momentos. Ora, contado isto, o fogo apoderou-se da casa, de divisões e mobílias coloridas, provocando um incêndio imediato que velozmente se alastrou.

E, de um momento para o outro, ele tinha feito algo que aborrecera o seu amor e o seu amor reagiu de uma forma que o aborrecera a ele... e porquê? O que tinha sido uma noite divertida uma semana atrás, era olhada naquele momento como uma sentença do pecado. Uma mutação de estados vistos à luz de diferentes olhares e perspectivas. E porque se conflituaram eles? Tentou buscar todas as respostas às questões que inundavam a sua cabeça. Mas como qualquer boa questão, as respostas traziam consigo mais perguntas. E, em qualquer possível conclusão, nada mais conseguia do que encontrar uma rasteira no final induzindo-o mais uma vez em dúvidas.

Uma boa resposta plausível poderia prender-se no que concerne ao “respeito” (ponho respeito com aspas na ausência da possibilidade de demarcar a palavra). E, largando assim uma frase solta: As pessoas não se respeitam umas às outras. Mas o problema que esta frase coloca é: O que é ter respeito? O que é respeitar? E como se mede o respeito. Por exemplo, todos nós sabemos que é falta de respeito entrar numa igreja aquando de umas belas férias e falar, no seu interior, como se de um café se tratasse. Mas no que consta a relações, como poderia ele adivinhar que o que fizera iria ser desrespeitoso para o outro? Se para si, assistir a um espectáculo de strip era uma coisa normal, sem maledicência, sem segundas intenções, sem pecado, porque haveria de ter pensado que isso iria magoar o outro? As pessoas são diferentes, pensam de maneiras diferentes e encaram a vida de formas diferentes. Onde encontrar o ponto para que as pessoas não se deixem nervosas umas às outras (quando falo de encontrar o ponto a minha mente viaja para a culinária onde por vezes é preciso encontrar o ponto para não estragar uma receita). Outra coisa que aqui surge é a nossa aprendizagem. Pois diferentes aprendizagens levam-nos a seguir diferentes caminhos e diferentes naturalidades de encarar as coisas. Por exemplo, na Alemanha é falta de respeito falar tudo ao mesmo tempo num jantar de vinte pessoas. Em Portugal, se nos juntarmos só cinco numa mesa para jantar, é certo que mais do que uma conversa se fará ao mesmo tempo sem que isso seja, necessariamente, uma falta de respeito. Chamam-se hábitos de uma cultura. Hábitos que podemos rejeitar, criar, aprender ou desaprender. Isto leva-nos, num âmbito mais universal, a tocar num ponto dúbio que é: Então cada um faz o que quer pois a sua cultura pode tê-lo ensinado assim. Não é isto que quero dizer. O que quero perguntar é se, ao embatermos com algo diferente da nossa cultura, teremos que reagir de forma tão agressiva e afastar qualquer hipótese de compreensão.

Voltando ao problema do respeito e do que é ter respeito, o que para ele estava correcto para o seu amor estava errado (acrescento o seu negativo dizendo que o que para o seu amor estava correcto para ele estava errado, isto para que não exista favorecimento a nenhuma das partes e para que não se pense existir um favoritismo do narrador pela personagem principal). Como concluir então a zanga entre os dois? É aqui que entra a componente do “ceder”. E quem se deve o gesto do ceder? Quem se prestaria a enveredar pela opinião que não é a sua. Quem iria ter a ousadia de entender o outro ponto de vista tendo em conta o erróneo que este o é na sua doutrina? Podíamos seguir para os dois caminhos e explorar as diferentes reacções na cedência de uma e outra parte, mas não é esse o meu objectivo. Pois antes que se divida ao meio tal história, é necessário colocar a questão da sobrevalorização que, implicitamente, está atribuída à pessoa que cede. É sempre um marco importante para um do casal quando o outro cede, atenta, compreende... Mas fará isso com que essa pessoa tenha mais valor do que a outra? Não seria mais justo irem desbravando juntos o caminho de uma relação sem o uso de patamares niveladores. Um conhecimento equitativo de ambos os lados. A imparcialidade a credos anteriores alargando o horizonte para um conhecimento mais absoluto. Então onde está o ponto que deve ser achado por duas pessoas? Onde estava o seu ponto?

Contudo, não deixava de colocar as questões: Porque é que se aborreciam as pessoas? Porque é que incomodavam tanto certos aspectos nelas? Porque é que as pessoas não podiam ser aquilo que queriam sem que isso incomodasse os outros? Serem para ensinarem e aprenderem a ser! Lembrou-se então da história caricata da T-shirt preta com uma caveira que o seu amor comprara e que tanto dava que falar aquando do seu uso. Por amor de deus, era uma T-shirt. Não iria matar ninguém. E para quê tanta conversa. Para quê aborrecimentos, para quê constrangimentos? Era uma T-shirt! E ele iria continuar a usá-la independentemente das opiniões forjadas em tom depreciativo dos seus amigos (pode parecer estranha esta intervenção sobre uma T-shirt na história. Mas referi-me a ela pelo simples facto de uma simples peça de roupa causar náuseas a certas pessoas quando estamos a falar de um bocado de tecido de algodão, tingido de preto, com umas tachas agarradas formando a cabeça de uma caveira. Como apêndice informativo relato a realidade presente londrina, onde a figura da caveira pegou moda e é visível por todo o lado em qualquer acessório de roupa nas mais variadas pessoas. Assim o digo para que se perceba que um texto fora do contexto é motivo para um pretexto. Se ele usasse a cuja dita em Londres seria apenas mais um.)

Só posso concluir que: As pessoas fazem tudo isto para se sentirem vivas.

WHY’S IT SO HARD por MADONNA

“Why's it so hard to love one another? Why's it so hard to love? What do I have to do to be accepted? What do I have to say? What do I have to do to be respected? How do I have to play? What do I have to look like to feel I'm equal? Where do I have to go? What club do I have to join to prove I'm worthy? Who do I have to know? I'm telling you brothers, sisters, why can't we learn to challenge the system without living in pain. Brothers, sisters, why can't we learn to accept that we're different before it's too late (first time only).

Why's it so damn hard (all other times). What do I have to learn to know what's right for me? What do I have to know? What am I going to do when I feel righteous? Where do I have to go? Who should get to say what I believe in? Who should have the right? What am I going to do with all this anger? Why do I have to fight? Bring your love, sing your love, wear your love, share your love. Bring your love, sing your love, wear your love, show your sister how…

Brothers, sisters, what do I have to say? Brothers, sisters, how do I have to play? Brothers, sisters, who should have the right? Brothers, sisters, why do I have to fight? Why's it so hard to love one another? Love your sister, love your brother… Why's it so hard to love one another? Why's it so hard to love?”

From: Girlie Show

E SE FREDERICO LOURENÇO NÃO TIVESSE SOBREVIVIDO? – COMENTÁRIO À ÁVIDA LEITURA DE “A MÁQUINA DO ARCANJO”, UM PROCESSO SEM RETORNO.

Foda-se!, pensou, desta vez tenho que usar um termo ordinário. De outro modo não pode ser. Foda-se! Tinha acabado de ler o último resquício do que lhe havia sobrado de Frederico Lourenço, “A Máquina do Arcanjo”. E nem um oitavo de dia foi preciso para que as páginas fossem devoradas com tamanho prazer. Mais uma vez o termo ordinário lhe ocorria mas absteve-se de qualquer desenvolvimento a esse nível. Um murro no estômago. E tinha-lhe sido servido mais um (livro), que degustara com sôfrega fome, não deixando de sentir todo o seu sabor, com tamanho cuidado e em tom fúnebre de velório. Pois nas últimas páginas arrastava sempre a leitura para que o fim não parecesse tão próximo. E quando terminou só conseguiu murmurar, foda-se! A batida tinha sido funda. Estaria pronto para regressar de novo ao mundo? A encarar da mesma forma tudo o que o rodeava? Tinha lido um coração, o seu coração, tocado por outras notas, desterrado em outros tempos, comummente vivido no mesmo espaço. E no qual ainda habitava, mesmo que por pouco tempo, até partir e deixar Algés, a Av. das Descobertas, o Restelo, Cascais, Lisboa... Se o tempo não fosse o que os separava e o espaço irreconhecível aos seus olhos, as memórias não diferenciavam assim tanto. Foda-se! As suas últimas palavras, em tempo as primeiras, deixaram-no perdido, no chão da sala vermelha do qual, furiosamente, arrancara o tapete preto roçado pelo tempo, para que apenas se conseguisse levantar e andar em direcção à cama, do quarto laranja, onde fechou os olhos e não adormeceu. Raios parta o amor e a sua expressão maquiavélica que damos uma vida inteira para a controlar sem nos apercebermos de que morremos ao tentar fazê-lo. E tudo deixa de ser uma questão de viver mas de sobreviver. A constante tentativa de sobrevoar por nós a epifania do século que a ciência vai explicando aos poucos por intermédio de nomes longos, estranhos e insignificantes ao comum dos mortais. E o passatempo torna-se um jogo, e o jogo torna-se viciante, e o vício torna-se doentio, e a doença torna-nos fracos, e a fraqueza não é mais que um passatempo que nos demos ao luxo de ter. E, se bem se lembrava, não existia nenhuma bem-aventurança que dissesse: Bem-aventurados os fracos, pois foram corrompidos pelo amor! E só restavam agora as lágrimas pois, Bem-aventurados os que choram, pois Deus os consolará.

“Felizmente sobrevivi”

SEM AS PALAVRAS

“[...] A outra coisa que me dou conta tem que ver com o que se passa lá fora: populares a festejarem de antemão a derrota da Mourama em África. Muda o vento e o jardim é invadido pelo cheiro a sardinhas assadas. Com um misto de pena e alívio, trancorporalizo-me de novo.”
Frederico Lourenço in A Formosa Pintura do Mundo

Leu as últimas frases do livro “A Formosa Pintura do Mundo” e desejou que este não acabasse. Não ali. Não naquele momento. A noite parecer-lhe-ia uma tão doce tristeza sem aquelas palavras. Mas ao seu lado já olhava para si “A Máquina do Arcanjo”, também de Frederico Lourenço, pronto a ser aberto e atacado. Existia salvação possível para uma noite tão quente. E logo os seus dedos tocaram a capa e abriram o livro para que novas palavras se prostrassem à sua frente.

Frederico Lourenço surgiu na sua vida em tom de conversa no café. E nada mais era, para si, do que um nome solto nos muitos nomes que lhe foram injectados nessa mesma noite. Mas quando esbarrou contra a capa azulada de “Pode um desejo imenso” soube que não iria parar. As palavras entraram em si como água e deslizaram para a sua alma como um néctar dos deuses. Uma lufada de ar fresco no panorama literário português. Pois a leitura era algo da qual não prescindia. E seguidamente devorou “O curso das estrelas” e “À beira do mundo”. As horas pareciam não ter calma para que pudesse apreciar com precisão mais um pouco daquelas sequências de letras plenamente amestradas em palavras e frases orgânicas, ritmadas, compulsivas, desejosas, snobs, envolventes, cortantes, simples, belas... e a noite tendia a acabar. Mas ele não deixou que isso acontecesse sem que lê-se “Amar não acaba”. E agora só lhe restava mais um... e quando esse acabasse quanto tempo mais iria esperar...

“Quando, no final da adolescência, a necessidade de passar da teoria à prática em questões sexuais começou a tornar-se premente, dei-me conta de que ser activo ao mesmo tempo nas esferas da música e do sexo causava um entrechoque com efeitos de anulação recíproca para ambas as coisas. Em termos de vivência prática, sexo e música eram, no meu caso, incompatíveis [...]”

Frederico Lourenço in A Máquina do Arcanjo

A LISTA

Se não conseguia olhar para o céu azul com a mesma inocência de criança, também não podia pedir a uma criança que fizesse uma dissertação sobre Camões. Perdeu-se na ideia da impossibilidade de voltar a sentir o passado como se do presente se tratasse. A essa função estavam destinadas as memórias. Positivas ou negativas elas haviam moldado o seu mundo, a sua cabeça, a sua vida.

Pensava nisto porque se ia embora. Pensava nisto porque iniciara a lista das coisas que levaria consigo. A lista que determinaria o que ia e o que ficava. E as memórias iriam consigo mas apenas como momentos fotografados na sua mente. Uma biblioteca que pegara fogo deixando apenas algumas histórias completas, outras em frases soltas e as restantes desaparecidas nas cinzas.

Era a distância que tornava as coisas importantes. Só o afastamento poderia tornar um momento histórico. Diz-se de alguns momentos: vai ficar para a história! Mas só quando criamos o intervalo necessário entre nós e esses acontecimentos é que eles se tornam, efectivamente, históricos. Perguntava-se o que iria ficar na sua mente com a distância. Do que se iria lembrar? Do que se iria recordar? Quais as histórias que iria contar quando chegasse ao novo mundo?

E a lista continuava a crescer.

- Isto fica... isto vai... Não me posso esquecer de comprar um bom dicionário de português para levar. E também quero ver se faço uma selecção de livros. Mas os livros são pesados. Vai ter mesmo de ser uma selecção rigorosa. É difícil. Isto definitivamente fica. Isto vai...

SÓ UM DIA. SÓ MAIS UM...

A casa estava de pantanas. Prometera a si mesmo que a ia arrumar. Só mais um dia. Só mais um... e a casa continuava caótica. Eram tintas espalhadas na sala em frente a um quadro por pintar. A louça lavada à espera de ser arrumada. A cama desfeita e os lençóis em revolução. Livros em todos os cantos. Coisas antigas aos montes.

Há quem diga que quando sonhamos com uma casa nada mais estamos a fazer que uma auto-análise de nós mesmos. Estaria a sua casa relacionada com o seu estado de espírito? Coisas soltas por arrumar. Sentimentos à espera de um lugar. E onde os arrumar? Onde? Só mais um dia. Só mais um... e a sua alma continuava caótica. Projectos por concluir. Pensamentos inacabados. Quadros por pintar. Livros por escrever. Conversas por ter. Amor por dar. Vida por viver. Só mais um dia. Só mais um...

O tempo estava a passar. E não tardaria muito para que partisse na sua viagem. O bilhete de avião já se encontrava na sua mesinha de cabeceira. Só de ida, sem data de regresso. E a casa continuava descomposta e a alma desordenada. Só um dia. Só mais um...

REALIDADE VIRTUAL

- Nós só vemos aquilo que queremos ver – dizia para si. Tinha de manter essa ideia presente. Concentrar-se na verdade de que a realidade era um mero espaço desconhecido em que se concentravam imagens pré-fabricadas pela sua mente. Estaria livre para pensar de outra forma? Estaria apto à desfragmentação desses objectos em prol de um vislumbre da sua transparente exactidão? E, afinal, em que consistia essa exactidão? Indagar pelo aglomerado de moléculas não lhe parecia o mais viável. Isso levaria a uma apreciação fria das coisas.

Mas onde estava então a verdadeira consistência das coisas, das pessoas, dos espaços se não na sua mente? E porque não deixar-se levar pelo que efectivamente queria ver? Mas sabia ser, para si, errada essa forma de encarar o mundo. Ele carecia ver mais para além dos seus olhos. Mais para além daquilo que se lhe postava à frente. O íntimo, o profundo, o privado, o âmago das coisas. Só assim se sentiria completo.

Perfurar as entranhas da vida. Realizar-se dos componentes que ligam as coisas. Mas sabia ser uma batalha injusta. Pois, efectivamente, só ele poderia chegar a conclusões. Sozinho teria de realizar essa formatação ao olhar, ao tacto, à audição, ao paladar e ao olfacto. Só ele. Mais ninguém.

TEMPO PARA TUDO - ECLESISTES 3:1-8

"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz."

A MORTE DE LOURENÇO

O dia lá fora estava pesado. Mais pesado do que os outros dias. Pesado. E o silêncio era a única coisa que queria ouvir. A chuva incomodava-lhe os pensamentos. Morrera. Estava morto. Haveria, porventura, salvação para o que morria? E para o que ficava? Pare ele que chorava a morte de Lourenço. Para ele que nunca mais o iria ver. Para ele que teria de continuar a viver. Viver e não morrer. Mais um dia. Mais um adeus. Durante quanto tempo mais iria suportar dizer adeus? Nada é eterno. Tudo é efémero. E isso deixava-o desconfortável. Quantos mais adeus iria dizer?

CARTAS TERMAIS

Aqui me encontro neste lugar inesperado. Não contava que esta viagem se cruzasse na minha vida. Não neste momento em que o tempo corre mais depressa que os relógios, em que cada minuto tem de ser aproveitado como se fosse o último. Não era bem por esta viagem que esperava. E, no entanto, aqui estou eu, afastado do meu mundo, da minha realidade, da tua realidade. Aqui rodeio-mo de árvores verdejantes e densas. O ribeiro corre silencioso. Por todo o lado vêem-se casinhas plantadas neste pequeno mundo rural que se rodeia à volta de uma fonte de água quente natural. Ontem à noite estive lá e o fumo evaporava-se no ar. É a natureza a trabalhar para nos proporcionar momentos calmos e relaxantes. É um lugar agradável, repleto de simplicidade e pessoas simples.

Mas, aqui, o tempo corre devagar. Deixo-me enraizar na terra, crio raízes neste ambiente florestal. Deixei-me a ouvir Diamanda Galás. A sua voz grunhiu-me na alma, um contraste que se adequa perfeitamente com o momento. Estou eu, ela e a natureza.
Aqui já se pôs noite e, no céu limpo, as estrelas brilham. Agora, só resta esperar pelo dia de amanhã e entender o que faço aqui, neste lugar inesperado.

Com amizade,
P.

Comecei a ler “Os Anões”, de Harold Pinter. Ainda não entendi os propósitos do autor ao escrever aquelas palavras. Mas tenho-me deleitado nas conversas que escreve. É como se tivesse acompanhado. Entro nas suas conversas como espectador passivo. Mas, não tarda muito, estou a terminá-lo, outros pormenores poderei dizer-te mais tarde.

Os dias aqui são mais compridos. Na cidade, provavelmente já teria passado uma semana. Aqui o tempo é nosso. Com ele fazemos o que queremos. É uma sensação de liberdade. Tenho-me feito acompanhar por algumas vozes. É outro dos meus estratagemas para me sentir acompanhado. Diamanda Galás, Regina Spektor e Amália foram, até agora a minha eleição. Entendo que me devas estar a achar estranho. O que faço eu num lugar de reflexão a tentar sentir-me acompanhado? Mas, as companhias que arranjo, ajudam-me a reflectir.

Tenho conversado imenso com a minha avó. Ainda esta tarde contou-me um pouco da sua história. É impressionante como o tempo passa e nunca chega para falar de tudo o que vai na nossa alma. Sinto-a triste com a vida. Em cada palavra que solta os seus olhos parecem querer chorar uma lágrima. Se ao menos o meu avô não tivesse partido sem avisar.

Com amizade,
P.

Acabei de ler “Os Anões”. Nada de novo. Conversas perdidas na linha do tempo; intemporais portanto. Mas não passam de conversas; conversas impossíveis. Nada mais tenho para te contar sobre o livro.
Receio que o dia de hoje tenha sido em vão. Não me prestei muito a pensamentos filosóficos. Andei. Isso sim. Andei pelos caminhos de areia junto ao ribeiro. Deixei-me a respirar o ar puro emanado das árvores e apreciei a natureza. Bela. Bela. Bela. Perfeita como nunca serei…

Com amizade,
P.

A vida dá muitas voltas. O destino é cruel, mas é o nosso mestre. Ele ensina-nos aquilo que precisamos compreender. Temos de aprender a escutá-lo. A ouvir a sua sapiência. Ele eleva-nos a um estádio superior. Hoje sinto-me mais conhecedor do que ontem. Sinto que o universo se revelou e abriu-me mais uma porta para o seu interior. Agora consigo vislumbrar mais estrelas. Agradeço-lhe por isso. Por acrescentar ao meu curso mais uma ou duas estrelas.

Com amizade,
P.

Estou quase de volta. Passo os meus últimos momentos por aqui. Tem-me feito bem respirar este ar puro e descansar nesta paz. Estou contente de ter vindo para aqui. Todas as experiências são sempre bem vindas. A novidade é sempre algo bem-vindo. Aperceber-me de mim mesmo tem-me feito bem. Passear sozinho pelos caminhos junto ao rio. Ouvir os sons da natureza. Confesso que o tempo foi muito. O vício da cidade é quase doentio. E o afastamento desta vai-me consumido o espírito. A falta de informação visual, de informação sonora, de informação! Estarei de volta não tarda nada. Assim espero.

Com amizade,
P.

O que fui lá fazer? Respirar! Sim, respirar para viver mais um pouco. Não é isso que todos queremos? Viver mais um pouco!

Com amizade,
P.

MEIO CORPO

- Isto faz parte da minha imaginação?
- Porque haveria de fazer parte da tua imaginação? – perguntou-lhe o miúdo das estrelas.
- E porque não haveria? Afinal, encontrei-te no outro mundo...
- Que é o mesmo que o teu.
- Sim, já me tinhas tentado convencer com essa ideia.
- E não te convenci?
- Em parte. Mas quem disse que eu não posso agarrar em ti e alterar os códigos da percepção?
- Os teus códigos queres tu dizer?
- Sim, os meus códigos. Neste mundo tu és o miúdo das estrelas. Mas fui eu que te imaginei assim, pois nesse dia estava a acender estrelas. E se tivesse estado a dar uma nova cor à lua? Não passarias a ser o miúdo da Lua?
- Mas a verdade é que estiveste a acender estrelas.
- E isso fez-me criar uma imagem de ti. Mas serás essa imagem?
- Para ti sim. Par outra pessoa serei outra coisa. Aquilo que ela imaginar. Mas isso não tem de ser pejorativo. Eu também tenho uma imagem de ti. Corresponderás efectivamente a ela? Provavelmente não. Ninguém é transparente o suficiente. Nem tu nem eu. E que importância tem? As relações entre as pessoas nascem do que elas oferecem umas às outras. Evoluem do conhecimento que se vai adquirindo sobre elas. E, muitas vezes, esse conhecimento poderá mudar a tua percepção. As pessoas mudam, a tua percepção delas também. Por exemplo: estamos os dois, aqui, sentados nestas rochas. Estamos a uma distancia de meio corpo. Para mim, isto é uma distancia aceitável e, para ti, pode ser intimidade a mais. Daqui a um mês, se voltarmos a estar juntos, sentados nestas rochas, o que representará esta distancia para nós? E daqui a um ano? Pergunto-te então: levar-te-á a algum lado não me veres como o miúdo das estrelas?

QUIROMANCIA

Levantou-se tarde, mal sabia ele que, naquele dia, iria ter uma experiência nunca antes vivida. Tinha combinado ir tomar um café aos Pastéis de Belém. Há algum tempo que não passava por aqueles lados. Parou o carro perto dos jardins. Ao atravessá-los foi interceptado por uma cigana.

- Rapaz. Não queres que te leia as mãos?

Nunca até então tinha tomado atenção àquelas senhoras que por ali andavam. Sempre que passava por elas acelerava o seu passo para não ser incomodado. Como tinha o hábito de chegar mais cedo aos encontros, resolveu experimentar. Depois de terem feito o acordo monetário, ela aproximou as suas mãos das dele e examinou-as com delicada atenção. Houve um período de tempo silencioso que o incomodou. Mas rapidamente a cigana começara a falar.

- És um rapaz bastante perceptivo, analisas criteriosamente e compreendes as coisas de uma forma mais universal. Procuras as raízes de tudo, não te deixas ficar pelo que é superficial. Tens uma natureza profunda e espiritualizada. Dedicas-te aos estudos da humanidade, da religião, da filosofia e da literatura. Vejo aqui que o teu senso de julgamento está bem desenvolvido. Aprecias a justiça e a verdade. Mas sabes que isso te assusta.
- Isso está tudo nas minhas mãos?
- Isto é só o começo. Perguntas-te como umas mãos tão feias podem dizer tanto?
- Eu não tenho as mãos feias.
- Se não roesses as unhas eram mais bonitas!
- Não estou a gostar.

A cigana riu-se. Tocou-lhe na cara, virando-a para ambos os lados...

- Não tenhas medo. És um rapaz bonito, mas os teus olhos estão cansados. Apesar do teu aspecto forte, escondes muitas fraquezas aos desatentos.
- Não me estava a ler as mãos?
- Que impaciência. Até parece que estás atrasado.
- Por acaso não estou.
- Eu sei que não estás. PERFECCIONISMO – gritou – ordem, qualidade. É assim que gostas de fazer as coisas. Tens uma alma solitária. Gostas de estar só e aprecias a tua própria companhia. Contudo, não consegues viver sem os outros. És narcisista e egocêntrico. Não te entregas a ninguém de mão beijada. Conquistas os outros pelo prazer de seduzir. Tens de alimentar o ego, infelizmente, não te preocupas com os sentimentos dos outros. E isso pode causar o afastamento de pessoas que te poderiam fazer muito feliz.
- Olhe lá, se era para me enxovalhar mais valia não dizer nada.
- Egocêntrico. Eu, eu, eu. Eu não estou aqui para te enxovalhar. Eu estou aqui para ler as tuas mãos. E tu não estás a prestar atenção. Tens de ter paciência. Tens uma boa alma e nunca te deves esquecer disso. Apesar de virares tudo para ti, sabes ser um bom amigo, um bom companheiro. Eu disse-te que tinhas de prestar mais atenção. Está atento! Abre os olhos! E agora vamos ver o que mais têm as tuas mãos para dizer. Aqui está uma coisa interessante. Ouve. Tens uma tendência nata para baseares os teus relacionamentos em diálogo e companheirismo. Mas não consegues parar por aí no amor. Quando amas precisar de culminar toda a sedução, todas as palavras, todos os sentimentos no carnal. E isso eu não precisava de ler as tuas mãos.
- Está a gozar comigo?
- Rapazinho tolo. Ouve aqueles que sabem do que falam. Tu és pedra dura!
- Sou carneiro.
- Como se eu já não soubesse. Mas continuando que eu não tenho a vida toda para ti. De ano para ano, vejo que te tens soltado mais, tens-te tornado mais jovial, espontâneo e liberal. Procuras por aventuras e novidades. Vais partir em breve.
- Como sabe?
- Ainda continuas com perguntas estúpidas?
- Tenho curiosidade!
- Eu sei. Passando à frente... Sempre te rodeaste de amizades mais velhas que tu, ou pelo menos, mais amadurecidas. Não te assustes se, na velhice, procurares aproximar-te dos mais novos. E só aí vais viver a verdadeira adolescência e juventude que agora vives de forma tão séria. Apesar de tudo ainda és muito emotivo. Deixas-te levar e esqueces-te da razão. E isto que te vou dizer não vem nas tuas mãos. Mas vais ter de começar a aprender a pedir desculpa.
- Mas se isso não vem nas mãos...
- É só uma conclusão que retiro do que leio. Mas isso já é contigo meu rapaz. Voltando ao teu lado emotivo. É comum empolgares-te facilmente com as coisas. Idealizas tudo e todos, desenvolves projectos, a maior parte que não vais realizar, deixas-te levar pelas coisas e sabes perfeitamente que isso te obriga a apanhares grandes decepções. Mas é assim que vives as coisas e de outro modo não o poderia ser. Porém, deixa que te diga, tu ainda não te definiste na vida, ainda não tens uma meta, apenas pontos de partida. E esses, sim, tens muitos. Apresentas uma boa memoria, uma excelente concentração, muito ligado às coisas físicas, concretas palpáveis e visuais. Mas apesar da tua natureza livre, decides-te, muitas vezes, por caminhos que te impõem limites para a tua expansão. Dessa forma, deixas de desenvolver, por vezes, a tua habilidade nata que reside nas artes. Mas como te disse, tu ainda não te definiste na vida. Não consegues deixar de amar. Toma cuidado. Por vezes temos de impor barreiras no amor. Há decisões que podem arruinar toda uma vida. Alguns acidentes subtraíram, ou subtraem alguma da tua alegria, mas isso foi, ou será, passageiro. Longa vida e boa viagem. Até outro dia meu rapaz.

E a cigana afastou-se por entre as árvores.

TODOS SOMOS POTENCIALMENTE OPTIMISTAS

Acordou, abriu os olhos e tudo estava silencioso. O conforto da ausência de ruídos era majestoso aos seus ouvidos. Era a paz mascarada de sossego. Respirou desse ar por instantes enquanto afagava o pelo ao gato branco. A meia luz que entrava pela janela refrescava-lhe os olhos ainda doridos de noites mal dormidas. Tomou o seu banho relaxado e deu-se à liberdade de andar nu pela casa. Sentia-se livre e o seu corpo dançava num bailado ao som de uma música que deixou a tocar.

Mais tarde, compôs-se e saiu porta fora. Depois da água, necessitava banhar o seu corpo em límpidos raios de sol. Na explanada do café tomou, sossegadamente, o seu refresco e lançou-se à leitura de uma revista, que tinha comprado numa papelaria juntamente com o maço de tabaco.

Acendeu um cigarro e ali ficou. Houve um artigo que o chamou mais à atenção do que os outros: “O poder do optimismo”. Achava-se uma pessoa optimista. Em alturas, optimista demais. E em grandes voos, por vezes, vinham grandes quedas. Mas isso não o assustava pois, associadas às grandes quedas, vinham grandes aprendizagens. No artigo, apercebeu-se que a filosofia do pessimismo ganhou forma no Renascimento, depois do Gótico e antes do Barroco. Teria a escuridão do gótico e a sua imponência diminuído as pessoas? As pessoas temem o desconhecido, o ausente, o imaginado.

“A noção de que um optimista é uma pessoa algo ingénua ou até pouco inteligente é baseada na influência dos filósofos europeus dos séculos XVI ao XIX. No entanto, pesquisas científicas feitas nos últimos dez anos têm demonstrado que as pessoas optimistas não são ingénuas, mas sim realistas, porque olham sempre para a questão no seu conjunto, acabando por dar mais peso ao lado positivo. Já os pessimistas não, focam-se logo no negativo. Outra coisa que também ficou demonstrada é que são mais persistentes. Um optimista esforça-se mais por resolver o problema do que o pessimista, porque tem mais confiança no seu poder e na sua força de vontade.” O artigo terminava com um texto muito interessante de João d’Alcaravela, “O optimismo é essencial e o pessimismo acidental. O primeiro é responsabilidade assumida e o segundo é abdicação. Mas uma pessoa nunca é totalmente só uma coisa, por isso, temos de ter a visão e a aspiração de que todos somos potencialmente optimistas. Trata-se de optimizar o que já temos”.

Quando acabou de ler o artigo, folheou mais algumas páginas, pagou o refresco e voltou para casa. Saboreou o caminho até ao último instante e, antes de entrar na porta do prédio, olhou para o céu e deixou mais alguns raios de sol penetrar na sua pele. Sorriu.

ÓDIO

O que ele mais odiava nas pessoas era a burrice. Disso estava certo. Podiam-lhe interromper o discurso, argumentando a existência de outras coisas (egoísmo, ganância, falsidade, má educação, mentira...), que ele mantinha a mesma opinião. Odiava pessoas burras e isso era um facto. É claro que as outras coisas também mereciam a sua atenção na avaliação, mas que as pessoas burras lhe faziam confusão... faziam! Ele dizia isto porque associadas à burrice vinham sempre outras características que o incomodavam.

Chegara também à conclusão que empregar a palavra odiar era forte demais. Odiar e amar eram conceitos demasiado extremistas para se dar ao luxo de lá chegar. “Que se lixe”, pensou, “se tiver de ser extremista ao ponto de dizer odiar, serei! Elas mexem-me com o sistema. Que posso eu fazer?”

Ele tinha consciência do abuso da palavra ódio. E sabia também que, muitas das vezes em que a empregara, não era o que realmente sentia. A palavra é sempre diferente do sentimento. É difícil sentir as palavras e mais difícil ainda é transformar os sentimentos em palavras. Sentir ódio era doloroso demais. Sentir ódio era sacrificar o bem estar pessoal. Sentir ódio era massacrar a alma. Sentir ódio era destruir a mente. Conseguir amar... aí estava o problema. Era sempre mais fácil aproximar-se do ódio que do amor. Mas quando amava a terra tremia. Sentir amor era maravilhoso. Sentir amor era aumentar o bem estar pessoal. Sentir amor era alimentar a alma. Sentir amor era evoluir a mente. Sentir amor... era bom!

Agora, se lhe perguntassem o que mais apreciava numa pessoa, ele não saberia responder.

PRIVAÇÃO PRIVADA

Estar sozinho. Ele precisava de estar sozinho. Fazia-lhe bem, por vezes, estar sozinho. Era uma dádiva encontrar-se desacompanhado. Não sempre... às vezes... de quando em quando. Estar isolado. Uma condição que impunha a si mesmo de tempos a tempos. Era necessário assimilar a sua existência. A compreensão de um corpo no universo. A materialização de si no espaço. A desmaterialização de si nesse mesmo espaço. “Aqui me encontro só, mas nunca abandonado, aqui me encontro. Aqui não sou, lá fora serei, aqui sou viajante, passageiro, temporário. Aqui não existo de verdade. Aqui sou fruto de observação. Sou cientista em estudo. Aqui olho para além de mim, pois o meu corpo não é só o meu corpo, o meu corpo é a junção das particular, o alinhavo do tempo, o cruzamento de outros dois corpos, um produto”, pensou ele.

Determinou-se a estar afastado dos outros em estado de meditação. Não que se quisesse afastar do mundo. Não era isso. Era mais um apelo à privação. Jejuar por umas horas, por uns dias, jejuar o seu corpo. Privar-se do que o rodeava por breves instantes. Estar consigo e para si, mais ninguém. A solidão sem a condição de solitário. Somente só, desacompanhado, livre... inspirar e expirar. Aperceber-se, num breve instante, da existência de um corpo, um corpo com uma alma, uma alma dentro de um corpo. Intimidade pessoal. Contemplar a sua própria imagem e, daí, retirar conclusões. Evoluir, passar a um outro estado, crescer, regredir, avançar, recuar, ajustar e voltar... voltar ao mundo e conseguir reconhecer aquilo que em tempos foi. Passar a pente fino a sua vida e redefinir-se. Encontrar o novo eu. Descascar a cebola e encontrar novas camadas, e debaixo dessas camadas outras ainda. Olhar através das camadas e ver o centro. Assumir-se parte do todo e ver-se em toda a parte de todas as partes. Ser isto e aquilo, estar além e aquém e continuar a sentir-se vivo.

Esse espaço privado ninguém lho podia tirar.